

O negócio da família de sapateiros Cavalheiro está localizado no Campeche, em Florianópolis – Foto: Germano Rorato/ND
Num mundo acelerado pela tecnologia e pelo consumismo, ainda há quem siga outro ritmo — o do couro, da argila e da linha. Em oficinas e pequenos comércios de Florianópolis, sapateiros, ceramistas e rendeiras mantêm vivo o trabalho artesanal, não só como herança cultural, mas como escolha de sustento e identidade.
Entre couro, argila e linha: ofícios artesanais que atravessam gerações
A sapataria da família Cavalheiro fica nos fundos de uma galeria, na avenida Pequeno Príncipe, em Florianópolis. Na bancada, os sapatos que chegam dividem espaço com a calculadora e o bloco de papel com folha de carbono. Sem computador, uma estrela é colocada na comanda cuja encomenda tem que ser entregue com urgência.
Aos 60 anos, Osnei Cavalheiro soma 49 anos trabalhando com sapatos. Uma trajetória que começou como modelista em uma fábrica em Sapiranga, Rio Grande do Sul, e hoje se traduz em consertos minuciosos no pequeno ateliê familiar no Campeche. Roana Cavalheiro, de 23 anos — a terceira geração da família a manter vivo o ofício, pediu para trabalhar com o avô. “Desde criança eu ia à fábrica do vô para catar pedaços de couro e fazer roupinhas para a Barbie”, lembra a neta das suas primeiras aventuras com a agulha.

Com 49 anos de experiência como modelista de sapatos, Osnei é responsável pelos consertos mais complexos da sapataria – Foto: Germano Rorato/ND
Assim como a família Cavalheiro, que molda sapatos há quase cinco décadas, Maria de Lourdes carrega uma vida inteira dedicada ao fazer artesanal. Sentada diante de um almofadado, Maria trabalha com os bilros, dezenas de bastões de madeira, cada um enrolado com uma linha de algodão. Com movimentos compassados, ela cruza os pares de bilros sobre um desenho perfurado, dando forma à renda.
Maria de Lourdes tem 63 anos e aprendeu a fazer renda de bilro aos sete, com a mãe, como tantas outras mulheres da Lagoa da Conceição. “Nós fazíamos para depois vender, para comprar um vestido ou um sapato para ir numa festa”, lembra. Durante muito tempo, a renda de bilro foi uma das poucas formas de garantir autonomia financeira para muitas mulheres da comunidade.

Maria de Lourdes Jesus, 63 anos, rendeira de Florianópolis – Foto: Daiane Nora/ND
Olhando para a estante do seu ateliê, Raquel da Silva separa bois de mamão feitos à mão por figureiras de São José. O primeiro contato que Raquel, 49 anos, teve com a cerâmica foi na UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina), em 1998. Ela explica que a aula da universidade foi o primeiro passo para aprender a arte da figuraria, prática milenar que mistura o barro e a água para criar formas que contam a história de antepassados.
“Eu sou apaixonada pelo figurativo folclórico, uma técnica inventada nas olarias para representar as tradições. Com ele, a gente representa a nossa identidade cultural. Eu faço, por exemplo, figuras como boi de mamão, rendeiras e pescadores”, exemplifica Raquel.
Esses ofícios são apenas alguns entre os muitos que compõem o universo do artesanato brasileiro. Segundo os últimos dados divulgados pelo Sebrae em 2022, o país tem cerca de 8,5 milhões de artesãos — em sua maioria mulheres que vivem diretamente da própria produção. O setor representa aproximadamente 3% do PIB (Produto Interno Bruto) e movimenta cerca de R$ 50 bilhões por ano.
Aprender com as mãos: o saber compartilhado
Com a comanda presa à alça, cada sacola com o calçado pronto é pendurada em um gancho na parede — marcado por uma letra do alfabeto. A oficina é pequena, lotada de calçados, com cheiro de cola e hidratante de couro. Osnei se senta em frente a mesa dos consertos mais complexos. Do outro lado da mesa que atravessa a sala, trabalha a filha Handra Cavalheiro, tia de Roana.

Osnei (à direita) ensinou o ofício para a filha (meio) e a neta (esquerda) – Foto: Germano Rorato/ND
Enquanto costura a sola de um coturno com uma agulha grossa, Handra, de 33 anos, explica que a costura é diferente de uma extremidade a outra. O detalhe não é visível, mas é sentido quando o cliente calça o sapato e não sente nos dedos o excesso de tecido de pontos próximos demais.
O mesmo rigor também habita o trabalho das rendeiras. O movimento dos bilros ressoa — tlec, tlec — e entrelaça os fios com precisão, formando diferentes pontos de renda: flores, arabescos, geometrias. Maria observa que, embora a nova geração de filhas de rendeiras tenham preferido outras profissões, há outras mulheres interessadas em aprender. “A minha filha não quis saber, mas tem gente que se encanta com o trabalho e quer que a gente ensine.”
Como é feita a renda de bilro, ensinada por Maria de Lourdes Jesus – Vídeo: Daiane Nora/ND
Maria de Lourdes é também professora. Dá aulas no Centro Cultural Bento Silvério, que desde 1994 oferece oficinas de renda de bilro na Lagoa. O espaço é um dos principais pontos de preservação da tradição na cidade.
Na comunidade José Mendes, em Florianópolis, o espaço Bico da Ponte dá aulas de cerâmica. Fundado por Raquel e pelo marido em 2001, o local é procurado por uma diversidade de clientes. Há quem deseja manejar o barro como forma de terapia, há religiosos que querem moldar as louças usadas em seus rituais, e até aspirantes do ofício que querem aprender a trabalhar profissionalmente com a cerâmica.

Raquel da Silva é figureira e trabalha com cerâmica desde 1998 – Foto: Gabriela Ferrarez/ND
Outro espaço criado para acolher este tipo de profissional é o da Associação dos Artesãos de Palhoça, na Grande Florianópolis, fundada por cinco amigas em 2024. Schaiana Alves, vice-presidente da associação, opina que esse tipo de espaço é fundamental para garantir a continuidade desses saberes artesanais. “O papel da associação é ser um ponto de acolhimento em nosso município. A gente quer compartilhar o saber e mostrar que o artesanato está virando tendência”.

Schaiana Alves, vice-presidente da Associação dos Artesãos de Palhoça, durante uma aula de renda de bilro – Foto: Schaiana/Arquivo pessoal
Além de oferecer oficinas e capacitações, a associação permite que os profissionais participem de feiras nacionais gratuitamente para expor o seu trabalho. Além disso, são incentivados a tirar a Carteira Nacional do Artesão, que facilita na hora de emitir nota fiscal, exportar os produtos para o exterior e participar de feiras nacionais e internacionais.
Desde a criação da Carteira Nacional do Artesão em 2015, Santa Catarina já registra 4.906 profissionais formalizados, de acordo com o Sicab (Sistema de Informações Cadastrais do Artesanato Brasileiro). Em todo o país, são mais de 233 mil artesãos cadastrados até maio deste ano.
Boca a boca: a rede invisível que mantém ofícios artesanais
Schaiana Alves conta como o consumo de produtos artesanais é diferenciado. “Hoje, quando a gente vai às feiras nacionais, os clientes não olham tanto o preço. O pessoal quer saber a história, e se você mostra o lado afetivo, eles entram no seu mundo”, diz.
Elizabeth Meira, de 70 anos, é cliente da sapataria Cavalheiro há oito anos. Moradora do Córrego Grande, ela atravessou a Ilha para consertar um par de sapatos. “Eu trabalhava aqui perto, mas me mudei. Ainda assim, continuo vindo aqui. Tudo o que eles fazem é perfeito, muito capricho. Estes sapatos são confortáveis e tenho muito carinho, vale mais a pena consertar do que comprar outro”, defende.

Elizabeth Meira é cliente da sapataria há oito anos – Foto: Germano Rorato/ND
Enquanto aponta para o ateliê lotado de sapatos, bolsas e cintos, Handra afirma que tem serviço pendente para ser entregue até a próxima semana. Em média, 15 pares ficam prontos por dia. E com a chegada do inverno, a procura pelo conserto de botas aumentou em quase uma hora a carga de trabalho diária.
Por outro lado, manter o ofício de ceramista para Raquel tem sido uma tarefa árdua. Ela explica que, conforme a urbanização aumenta, a argila fica mais difícil de acessar e encarece. “É penoso e pouco lucrativo. A gente se doa porque a gente ama. Porque render, não rende. E não é por falta de gente interessada, é por falta de mais apoio mesmo público mesmo”, lamenta a figureira.
A renda de bilro, por exemplo, não é uma atividade lucrativa. Exige tempo, dedicação e paixão, diz Maria de Lourdes. “A gente faz uma pecinha e leva uma semana. Vende por R$ 200. É a profissão do amor, pela criação e pela cultura que a gente carrega”. As encomendas vêm muitas vezes por indicação, outras pelo comércio local. “Um vai chamando o outro, e as encomendas chegam. Minha irmã agora tá fazendo renda para São Paulo, para uma grife de lá”, relata Maria.
Recentemente, a renda de bilro ganhou novo reconhecimento institucional. Uma lei municipal criou o Selo de Qualificação e Certificação das Rendas de Bilro em Florianópolis, garantindo a autenticidade das peças e incentivando a produção local.
Mulheres no comando: a nova cara dos ofícios de família
Na oficina da família Cavalheiro, as mulheres pouco a pouco vão ganhando protagonismo. Handra cuida da costura à mão dos sapatos. Já Roana, neta do sapateiro, costuma pintar, colar, hidratar os calçados e atender os clientes da sapataria.

Handra costura a sola do coturno enquanto Osnei avalia a sola do tênis – Foto: Germano Rorato/ND
“Quando a gente demora um pouquinho para atender, é porque a gente está fazendo algum trabalho. As pessoas estranham às vezes. Acham que a gente fica aqui esperando só atender, mas não, a gente também faz. Eles ficam impressionados quando descobrem que somos sapateiras também”, conta Roana.
No entanto, Roana não pretende trabalhar somente como sapateira, e já flerta com a profissão de manicure: “Você lixa, passa o solvente, e depois pinta. Os processos são muito semelhantes. Já está combinado, vou trabalhar aqui e no salão que fica no início da galeria”, revela.
Se manter no negócio familiar deve ser uma escolha consciente, marcada pela autonomia e empreendedorismo, afirma Marina Barbieri, coordenadora do Sebrae Delas em Santa Catarina. “Se a mulher optar por permanecer no negócio da família, é uma escolha dela. A gente precisa deixar claro não só para a sociedade, mas também dentro de casa, que a decisão é nossa.”

Marina Barbieri está à frente do Sebrae Delas – Foto: Reprodução/LinkedIn/ND
Esse protagonismo crescente levou Santa Catarina a se tornar um dos 12 estados escolhidos para o projeto-piloto do Sebrae Delas (Desenvolvendo Empreendedoras Líderes Apaixonadas pelo Sucesso). Desde 2019, o programa oferece cursos, consultorias e aceleração voltados especialmente às mulheres donas de negócios.
“A sucessão familiar nem sempre é um caminho fácil”, observa Marina. “A pressão da família e as divergências entre as gerações podem ser um obstáculo no processo”, avalia a coordenadora do Sebrae Delas. “Isso porque cada vez mais as novas gerações têm um olhar diferenciado, tanto para o negócio, quanto para o que querem da vida.” Segundo Marina, o Sebrae Delas surgiu justamente para enxergar essas especificidades e fortalecer o que as mulheres têm de diferencial ao empreender.
O cenário mostra essa mudança em curso: o Brasil atingiu o recorde histórico de 10,35 milhões de mulheres empreendedoras no último trimestre de 2024, segundo o IBGE. A maioria das donas de negócios atua no setor de serviços (56,8%) ou no comércio (25,1%).
Para Marina, o impacto do empreendedorismo vai além da renda, transforma trajetórias e gera oportunidades. “Cada vez mais vemos mulheres empregando mais mulheres. Isso mostra o quanto temos sensibilidade e um compromisso com a coletividade.”
Tradição que cuida: o valor sustentável do artesanal
Enquanto o consumo acelerado leva à produção em massa e ao descarte precoce, os ofícios artesanais oferecem uma alternativa mais consciente. Em vez de substituir o velho pelo novo, eles propõem recuperar, preservar e transformar. A renda de bilro é feita praticamente da mesma maneira que a de cinco décadas atrás. “A diferença é que antes a gente sentava no chão. Agora senta numa cadeira. De resto, é o mesmo trabalho. São os bilros, o pique, os alfinetes e a linha de algodão. Tudo feito à mão”, explica Maria de Lourdes.

Renda de bilro é um dos trabalhos artesanais tradicional de Florianópolis – Foto: Daiane Nora/ND
A sapataria continua sem ter nenhum computador. A memória do Osnei, tão afiada quanto a faca que usa para os consertos, identifica também as encomendas apenas pelo olhar. Para ele, pouco mudou na técnica e no tipo de cliente que busca os serviços da família: gente que valoriza durabilidade, cuidado e o saber feito à mão. Em tempos de consumo exagerado, seu trabalho carrega um valor sustentável: prolongar a vida útil dos produtos e evitar o descarte prematuro.
A mesma lógica de reaproveitamento aparece na produção de cerâmica. Um forno é utilizado para a queima das peças de barro, uma das etapas finais do processo. A estrutura foi construída com a mão de obra de voluntários ocupa no espaço Bico da Ponte e custeada por uma vaquinha. Como os custos do gás são altos, a queima costuma ser feita com lenha, numa lógica de economia e autogestão. O espaço se mantém com o trabalho voluntário da comunidade e com o dinheiro pago por quem frequenta as aulas.
Na Associação dos Artesãos de Palhoça, a vice-presidente destaca como ofícios manuais deixam sua pegada verde. “99% da associação é sustentável. Os associados trabalham com fios naturais, reutilizam materiais. O que sobra de madeira, por exemplo, é doado para fazer casinhas açorianas. A gente quer um ambiente mais limpo e qualidade de vida para as próximas gerações”, garante Schaiana Alves.
Ofícios artesanais como o da sapataria, da renda de bilro e da cerâmica mostram que tradição e futuro podem caminhar juntos. Transmitidos entre gerações, esses trabalhos manuais continuam essenciais para as comunidades: geram renda, reforçam identidades locais e propõem formas mais sustentáveis de produzir e consumir. Como resume Schaiana, “o produto tem que ter uma história” e os clientes querem fazer parte dela. Isso, nenhuma máquina oferece.