Maicon Tenfen, 49 anos, deixou a área rural do pequeno município de Ituporanga (SC), no Vale do Itajaí, para se tornar um prolífero multimídia: escritor, roteirista de cinema, professor universitário e um missionário na causa da formação de leitores. Graduado em letras (Furb), mestre em literatura brasileira e doutor em teoria literária (ambos pela UFSC), trouxe o gosto por livros como herança da leitura na infância e da passagem pelo seminário São Francisco de Assis. Também por isso, considera o ambiente escolar como o caminho inevitável para revertermos os alarmantes dados relativos aos hábitos de leitura no Brasil.

Como avaliar os resultados do diagnóstico “Retratos da Leitura 2024” (Instituto Pro-Ler), revelando que 53% das pessoas não leram nem parte de um livro nos três meses anteriores à pesquisa?
Maicon Tenfen – A leitura sempre foi uma questão problemática em nosso país. Primeiro, porque nunca tivemos um projeto de alfabetização que realmente fosse eficaz. Tivemos uma experiência de massificar com o Mobral, mas isso acabou comprometendo a qualidade. Então, nunca tivemos uma alfabetização sustentável e é por isso que se fala tanto em analfabetos funcionais. Inclusive entre o público universitário, o que é muito problemático. Aí nos deparamos com aqueles que leem muitas coisas que não podemos chamar de literatura. Eu não sei até que ponto essa leitura seria eficiente, capaz de ser relacionada à cidadania. Se uma pessoa lê um livro do tipo “Como enriquecer em dez lições” – não tenho certeza se essa leitura é, de fato, algo agregador. Já achei que valia a pena, porque acreditava que as pessoas começariam por livros assim, depois passariam para gêneros artísticos. Só que o tempo me mostrou que isso também não acontece. Então, temos um problema muito sério.
Em médio prazo, qual seria a solução?
Maicon Tenfen – A solução também é complicada, porque a leitura pode vir de três instituições – família, religião e escola. Antes ela até poderia vir da mídia, só que os jornais e a revistas impressas já não circulam mais, além de vivermos uma época em que tem predominado uma obsessão pelo vídeo. Família, pode esquecer. São poucas as famílias privilegiadas que têm uma biblioteca em casa, normalmente são as de classes mais abastadas. E tantas décadas se passaram desde quando os pais liam, hoje eles já não leem, individualmente ou junto com os filhos – com honrosas exceções. A religião, com o devido respeito a todas as crenças, já traz a leitura com caráter enviesado. Ou seja, você lerá obras estritamente relacionadas àquela prática religiosa. Alguns acabam diversificando, mas isso também é raro, não é algo que presenciamos todos os dias. Então resta a escola, a leitura tem que vir da escola. A nossa esperança está nas escolas, porque a escola está em todos os lugares do Brasil, o sistema de aprendizagem escolar chega às aldeias e comunidades mais distantes, mais isoladas. O que precisamos agora é transformar essa escola em meio eficiente na divulgação do hábito da leitura. Porque, por enquanto e de maneira geral, a escola não está funcionando como difusora da leitura. Percebo isso em sala de aula, meus alunos não têm um pretérito de leitores, não carregam consigo a experiência de leitura.
“Precisamos transformar a escola em meio eficiente na divulgação do hábito da leitura”
Qual é o papel da literatura infantil e infantojuvenil na formação dos leitores?
Maicon Tenfen – Quanto mais cedo a criança for exposta ao livro, melhor – mesmo que seja aquele livrinho de borracha que o bebê leva para o banho. De acordo com a minha experiência, considero que a fase mais rica de leitura, a idade mais instigante, a maravilhosa idade da leitura é entre 9 e 12 anos. Naquilo que os psicólogos chamam de pré-adolescência, a transição entre a infância plena e a puberdade. Não sei se foi a época em que eu mais li, mas a época em que eu mais fruí, da qual eu mais gostei, de quando mais tenho lembranças saborosas de leitura. Eu lia muito os livros do Karl May, (nota do colunista: escritor alemão que se notabilizou por seus romances de aventuras, ambientados no velho oeste dos Estados Unidos). E eram livros enormes. Essa é uma fase fabulosa para a leitura, um momento de sonhar. O Érico Veríssimo tem o livro As Aventuras de Tibicuera, dedicado justamente às crianças dessa faixa etária, de oito, nove anos em diante.
“A maravilhosa idade da leitura é entre 9 e 12 anos”
Foi isso que o fez um autor infantojuvenil?
Maicon Tenfen – Eu levei muito tempo para isso. Houve uma época em que as pessoas diziam que eu era um escritor de romances policiais, um clichê com o qual nunca me identifiquei. Depois me viam como autor de literatura infantojuvenil, embora eu nunca tivesse escrito um livro que fosse especificamente para essa faixa etária, mas sempre tenha trabalhado em escolas. E de uns tempos para cá, finalmente, tenho me dedicado a esse gênero. Eu lancei duas séries com ilustrações do Rubens Belli (nota do colunista: ilustrador e criativo blumenauense que é referência nacional no ofício). Uma se chama Lutz e Gandalina, que é uma homenagem às novelas de cavalaria, e a outra se chama Hugo Gê, um tributo à literatura de ficção científica. Eu convidei o Belli para ilustrar porque trabalhamos juntos numa série de animação chamada Boris e Rufus, em que produzi o roteiro. E é um negócio fantástico trabalhar com animação e filmes, mas eu sempre acabo voltando ao livro. O livro é a minha base, o meu porto seguro.
“O livro é o meu porto seguro”
Lançaste duas obras, recentemente?
Maicon Tenfen – São duas edições diferentes, ambas no segundo volume, publicadas pela Editora Salto Grande. “Hugo Gê – A Rainha dos Vulcões” no qual o protagonista precisa tomar conta de um planeta em miniatura, guardado no porão secreto de sua casa e por vezes diminui de tamanho e ingressa no planeta. E neste planeta existe o mundo de “Lutz e Gandalina”. “Hugo Gê” tem esse nome em homenagem a Hugo Gernsback, o escritor e jornalista estadunidense que lançou a “Amazing Story”, primeira revista do mundo dedicada à ficção científica, nos idos de 1926. O outro título é “Lutz e Gandalina no castelo da teia de aranha”. Nessas obras, acompanham materiais de apoio pedagógico, podem ser utilizados em sala de aula para fomentar o hábito de leitura entre os alunos.

O que está lendo Maicon Tenfen?
“O Samurai Africano” (Alta Novel), do canadense Craig Shreve, romance histórico que resgata a épica jornada de Yasuke (provável corruptela de Isaac), levado desde Moçambique ou Angola ao Japão, pelos jesuítas no final do século XVI. Foi presenteado como valet ao senhor feudal Oda Nobunaga, o primeiro dos três unificadores do Japão, em meio a uma renhida guerra de clãs. A presença de um africano negro causou muito alvoroço na sociedade japonesa, que custou a crer que sua cor não era produto de pintura. Yasuke se incorporou à vida (conturbada) de Nobunaga e teria inclusive contribuído com o seu suicídio forçado, por ordem do general samurai Akechi Mitushide. Há inúmeros relatos de Yasuke, que o tornaram um mítico personagem ficcional, matéria-prima dos games, filmes, documentários, artes plásticas e até na moda.
Revisitando a crise sanitária, nas páginas de Daniel Defoe
Há exatos cinco anos o mundo estava se fechando contra a pandemia da Covid-19, a primeira crise sanitária de proporções globais desde a gripe espanhola, em 1918. No Brasil, foram 715 mil mortes. Mas no passado a humanidade se deparou com epidemias de maior letalidade – e entre elas a peste negra foi a mais destruidora. Dos séculos VI ao XIX entre 50 e 100 milhões de pessoas morreram na Europa, China, Índia e África, vítimas da peste bubônica.
Um diário do ano da peste (1722), produzido por Daniel Defoe, é um legado do drama vivido pelos londrinos em 1865, no qual estima-se que a peste bubônica tenha provocado pelo menos 200 mil mortos. Um leitor desavisado pode considerar o trabalho como o relato de alguém que viveu aquele período de caos, quando as pessoas jaziam pelas ruas e eram sepultadas em valas comuns, sem qualquer identificação. Setenta por cento dos contaminados pereciam entre dois e sete dias. Mas o que Defoe produziu foi a gênese de um livro reportagem, resultado de uma preciosa apuração, com raras licenças literárias, quase 40 anos mais tarde. No prefácio da edição da editora LP&M (1987), Anthony Burgess, autor de Laranja Mecânica, considera que Defoe “(…) foi o primeiro grande novelista porque foi nosso primeiro grande jornalista”. A obra, segue Burgess, “tem a verdade do historiador consciencioso e escrupuloso, mas a sua verdade mais profunda pertence à imaginação criativa”.
Aos que estão considerando o nome de Defoe como familiar, confirmo que ele foi o autor de Robinson Crusoe (1719), entendido pelos críticos como a estreia do romance moderno.
Ressalvados os quase quatro séculos que nos separam daquela epidemia, Um diário de um ano da peste traz lições relevantes sobre a importância do confinamento, das ações do poder público em favor das populações de baixa renda e dos preconceitos no relacionamento entre quem era saudável (embora não por muito tempo) e os contaminados.
Luciano Martins

Uma vida em favor dos livros
No decorrer da produção dessa coluna ocorreu a morte de Affonso Romano de Sant’anna, aos 87 anos. Escritor de prosa e verso, ex-marido de Marina Colasanti, que também faleceu recentemente, Sant’anna deixa uma vasta obra, porém a lembrança que mais me marcou em sua jornada foi a dedicação em favor da leitura. Quando presidiu a Biblioteca Nacional (1990 – 1996) foi responsável, entre muitas medidas, pela criação do Programa Nacional de Incentivo à Leitura, ativo até hoje. Também criou o programa de bolsas para tradução de literatura brasileira no exterior. Salve Sant’anna!
Lançamento

“A morte dos deuses”: muito além dos clichês, um romance para imergir na história dos vikings
Conhecemos os vikings por estereótipos reproduzidos pelo cinema e séries do streaming: bárbaros, rudes e saqueadores. Mas no romance histórico “A morte dos deuses” (Carbo Editora), Roy Warncke Ashton oferece uma visão bem mais real desses povos, a partir da figura do rei norueguês Olaf Tryggvason. Personagem lendário do século X, o líder viking foi precursor da cristianização da Escandinávia, pacificou seu povo, expandiu o império nórdico e introduziu valores civilizatórios até hoje presentes no mundo ocidental.
A bordo do veleiro Rasmussen, preparado para expedições científicas, uma equipe de pesquisa do século XX se depara em um ambiente do passado e testemunha momentos épicos daquele período, quando os europeus viviam importantes mudanças culturais. Nesse relato, o autor resgata alguns mistérios de Tryggvason: teria o norueguês desaparecido em uma batalha naval ou simulado sua própria morte e a partir dali vivido sob outra identidade, convertido em um influente conselheiro do rei que o sucedeu?
“A morte dos deuses” é o resultado de cinco anos de trabalho do autor, dois deles pesquisando e outros dois escrevendo e validando suas informações – incluindo aí uma viagem pelos principais sítios históricos descritos em sua narrativa. No prefácio, Ashton faz uma homenagem a Péricles Prade, advogado, juiz, jornalista, crítico e escritor catarinense, que faleceu em maio último, aos 82 anos. Prade era um bom amigo do autor e acompanhou produção do livro desde sua concepção, além de estar presente no périplo do autor pela Escandinávia.