Opinião | O que você quer ser quando morrer?

Se uma escola de samba decidisse levar para a avenida um enredo sobre o pós-vida, a sinopse poderia ser algo assim: “O que você quer ser quando morrer? Unidos da Reflexão em uma viagem pelas memórias que deixamos na vida dos outros”. Entre uma ala e outra, separando opiniões e o exercício dos dias, o que sobraria mesmo seria um grande e inevitável esquecimento. Pouquíssimos de nós têm a capacidade de ganhar um título, uma lembrança, um sentimento de presença após duas ou três gerações da partida.

É curioso como, na infância, passamos tantas horas nos preocupando com o que seremos quando crescermos e, quando adultos, raramente dedicamos cinco minutos para pensar no que seremos depois de batermos as botas. Que desgraça de memórias deixaremos? Qual o impacto que provocamos e que justificou a nossa existência? Quais histórias contarão sobre nós? Será que dirão: “Que pessoa foda!” ou será um alívio coletivo com um “Graças a Deus, foi-se aquele mala alienado!”

Confesso que sempre me faço essa pergunta enquanto observo, com uma espécie de náusea existencial mal disfarçada, o desfile patético dos nossos contemporâneos marchando em direção à cova. Somos, na verdade, uma procissão de cadáveres adiados, trocando tempo por fofocas, julgamentos, boletos e problemas que nós mesmos criamos. E seguimos desfilando com a presunção de quem acredita piamente ter uma importância além do próprio umbigo. Na verdade, estamos todos condenados ao ridículo perpétuo de uma sociedade que confunde valor com aparência.

Porque, sejamos francos, morrer é um problema para os vivos. Para quem parte, o outro lado é apenas um rodapé na biografia universal. Napoleão Bonaparte já dizia: “A morte poderia ser um sono sem sonhos”. Por aqui, seguimos acreditando na versão que o catalão Joan Manuel Serrat concebeu: “Sem sonhos, a vida seria somente um ensaio para a morte”. Mas, no fundo, sabemos que a real tragédia não é a morte em si, mas a forma como somos lembrados – ou pior, esquecidos. Aos que creem em um plano superior, talvez o consolo seja a ideia de que se deixa a terra para encontrar uma oportunidade de bater um papo com outras almas ilustres.

Tem gente que passa os domingos ajoelhada no banco da igreja, rezando, acumulando indulgências, na esperança de um camarote VIP no Éden, como quem reserva antecipadamente uma suíte presidencial no Reino dos Céus. Tudo nelas é uma negociação com o divino: “Se eu não transar antes do casamento, se eu não falar palavrão, se eu denunciar os pecados da vizinha…” Uma vida inteira construída na base do medo do inferno, sem perceber que já vive num, de sua própria fabricação, feito de privações e auto-penitências.

Outros vivem como se o dia de amanhã fosse um detalhe técnico, preocupados apenas com o próximo pix para a cervejinha. Há também quem escolha a trincheira ideológica. Esse briga, cospe, bate no peito com convicção messiânica, como se seu nome fosse virar nome de rua. Algo do tipo “Rua Fulano da Silva, Grande Guerreiro Contra o Comunismo” ou “Avenida Sicrano dos Santos, Defensor Inabalável da Revolução Proletária”. Lamento ser o portador de más notícias: não vai acontecer. O máximo que esse perfil de pessoa consegue é um grupo de WhatsApp discutindo o “legado” até alguém postar um meme e mudar de assunto.

A ironia é que muitos desses gladiadores modernos vão morrer defendendo gente que nem sabe que eles existem. E talvez, no futuro, sejam lembrados não como heróis, mas como hipócritas, iludidos ou apenas ranzinzas inconvenientes. Porque, no fundo, a política, a fé e os grandes discursos sobre moralidade são apenas a moldura dourada para um quadro inevitável: ninguém escapa do esquecimento.

Que legado é esse, cara pálida? O que restará de você além de memes raivosos e mensagens tóxicas que ninguém terá paciência de rolar após o seu funeral economicamente planejado?

A verdade nua e crua é que a maioria de nós será esquecida em duas gerações. Aquela foto no porta-retrato da sua neta vai virar “um parente antigo qualquer” para os seus bisnetos. E tudo pelo que você se dedicou, brigou, economizou e se estressou vai ter o mesmo valor de figurinhas repetidas de álbum: nenhum.

Por isso, essa reflexão sobre o que queremos ser quando morrer é muito mais uma análise daquilo que exercitamos todos os dias. Seguimos nos entupindo de ansiolíticos, batalhando por likes e promessas de felicidade futura, trocando o presente possível por futuros imaginários. Os religiosos adiam a felicidade para depois da morte. Os workaholics, para depois da aposentadoria. Os pais, para depois que os filhos crescerem. E assim vamos todos, adiando vidas como quem adia o pagamento do cartão de crédito, acumulando juros existenciais impagáveis.

E o que será da nossa biografia depois de morrer? Bom, como diria aquele amigo sincero que todos temos: foda-se, né? No fim das contas, o verme não discrimina entre o devoto e o cético, entre o militante e o alienado. A diferença é que alguns terão vivido acreditando em fantasias consoladoras, e outros terão, ao menos, conhecido o gosto amargo da verdade nua e crua.

Eu, particularmente, quando morrer, quero ser aquilo que nunca consegui na vida: alguém em paz com o absurdo. Alguém que entendeu que o desfile passa, a fantasia rasga, e que o único aplauso que importa é aquele que damos a nós mesmos quando ninguém está olhando.

Como diria Cartola, um sambista que guardava filosofia nas letras que criava: “se alguém por mim perguntar, diga que eu só vou voltar depois que me encontrar… Quero assistir ao sol nascer, ver as águas dos rios correr, ouvir os pássaros cantar. Eu quero nascer, quero viver.”

Tarciso Souza, jornalista e empresário

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