Opinião | O passado é uma cidade que não nos serve mais

Ouvindo Belchior cantar que “uma nova mudança em breve vai acontecer”, me pego refletindo sobre os desafios urbanos que enfrentamos. Em Blumenau, a tragédia climática da última semana nos lembrou, mais uma vez, da fragilidade da nossa cidade diante dos eventos extremos. Em minutos, ruas ficaram alagadas, danos materiais e traumas emocionais se somaram a mais um dia triste da nossa história. O sentimento que fica é: estamos realmente evoluindo como cidade?

Para responder essa pergunta, podemos analisar duas escalas: a global e a local. A primeira está fora do nosso alcance imediato e depende de um longo processo de mudança cultural para reduzir impactos ambientais. A segunda é a que nos cabe diretamente: as soluções cotidianas, os “tapa-buracos”, a solidariedade após os desastres, mas também o cinismo com que aceitamos soluções urbanas equivocadas.

A cidade é resultado dos nossos hábitos, do nosso consumo, da nossa omissão e, principalmente, da nossa ação. Cada vez que transferimos para terceiros a responsabilidade pelo planejamento urbano, abdicamos de decidir o futuro do lugar onde vivemos. Até quando vamos normalizar as tragédias e investir apenas em medidas pós catástrofe? Esse modelo é como uma roupa velha que já não nos cabe mais.

Blumenau é uma cidade de dinâmica hídrica e ambiental complexa. Ainda assim, seguimos ignorando a necessidade de um planejamento baseado nesses fatores. Chegamos a um ponto em que sequer sabemos onde estão nossas tubulações de drenagem. Qualquer tentativa de regulação é sistematicamente sabotada sob a justificativa do “desenvolvimento econômico”, como se crescimento e sustentabilidade fossem conceitos opostos.

Sou conselheira do COCPLAN representando o Instituto de Arquitetos do Brasil e, repetidamente, escuto que “a cidade não pode retroceder”. Mas para onde estamos indo? Estudos de viabilidade de ruas, pontes, condomínios e edifícios são aprovados sem um entendimento real da capacidade de suporte do território. Cada terreno se comporta como um “reino privado”, sem preocupação com os impactos no entorno. Essa lógica ultrapassada precisa ser superada.

Vivemos um momento de transformação climática acelerada, mas as soluções urbanas seguem restritas a discursos vazios, eventos de networking e propaganda enganosa sobre sustentabilidade. Precisamos aterrissar na realidade e assumir, coletivamente, nossa responsabilidade técnica, jurídica, social e econômica. Pode e tem todas as possibilidades de ser referência em cidade resiliente e inteligente.

A urgência desse debate é clara. Precisamos rejuvenescer não apenas nossas ideias, mas também nossas ações. Quando experiências brutais como a da última semana acontecem, fica evidente que estamos ultrapassados. Com coragem, cooperação e humanidade, podemos retomar nossa capacidade técnica para embasar decisões políticas mais assertivas.

Blumenau precisa reativar seu Instituto de Planejamento para garantir um desenvolvimento urbano baseado em governança participativa, soluções sistêmicas e tecnologias de ponta. Antes de querermos cidades “inteligentes”, precisamos de cidades sensíveis e verdadeiras. O colapso está à nossa frente. O que faremos a partir de agora determinará se continuaremos repetindo tragédias ou se seremos capazes de construir um futuro mais resiliente. Precisamos de um novo pacto. Precisamos conversar verdadeiramente. Precisamos rejuvenescer.

Daniela Sarmento, arquiteta e urbanista

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