Após Violência Que Colocou Sua Vida em Xeque, Executiva Assume Diretoria da Nestlé Latam

Forbes, a mais conceituada revista de negócios e economia do mundo.

 

 

Ainda estudante, Kátia Regina começou sua carreira na Nestlé na fábrica de Caçapava, interior de São Paulo. Em mais de 20 anos na multinacional, a executiva rodou o mundo. “Se você não se movimenta, as coisas acontecem, mas em uma velocidade diferente”, afirma. Assumiu posições em Vila Velha, no Espírito Santo, e no Rio de Janeiro, foi trainee global na Suíça, visitando 18 países em dois anos, e agora chega ao México para liderar a área de Total Rewards para a América Latina. “Hoje eu tenho rodinhas no pé”, diz ela, no sentido figurativo e também literal.

Há pouco mais de dois anos, Kátia foi vítima de violência doméstica e ficou paraplégica. Depois de 10 meses de reabilitação, voltou ao trabalho em uma cadeira de rodas e pensando que sua carreira tivesse acabado. Mas foi logo recebida com a oportunidade de fazer um treinamento na Suíça. Menos de um ano depois, veio o convite para mudar de país e a promoção para assumir uma posição regional. “A mudança de vida já foi tão grande que agora qualquer outra parece simples.”

Leia também

  • Carreira

    Brasileira Vai a Paris Liderar Marketing Global de Marca de Beleza Francesa

  • Divulgação Bayer
    Carreira

    Nova CEO da Bayer Consumer Health: “Precisamos Dizer o Que Queremos na Carreira”

  • Montblanc/Igor Kalinouski
    Carreira

    Nova CEO da Montblanc conta o que é preciso para chegar à liderança

Até então, era diretora de Total Rewards da Nestlé no Brasil, responsável pelas estratégias de remuneração e benefícios de 20 mil funcionários. Agora, o desafio mais que quadruplicou: são cerca de 85 mil funcionários em 20 países espalhados pela América Latina. “Fui promovida para uma posição em que a mobilidade é essencial”, diz ela, citando as viagens que fez em 2024, para Chile, México, Portugal e Suíça.

Apesar de apresentarem características semelhantes, os países da região vivem momentos econômicos e políticos distintos, o que aumenta a complexidade. “Fazer a gestão de remuneração em mercados como Venezuela e Argentina é completamente diferente de lidar com Brasil e México, que também enfrentam dificuldades econômicas, mas sem o mesmo nível de volatilidade.”

Mas Kátia é conhecida justamente por sua habilidade de transitar por cenários complexos, o que a levou a assumir posições em diferentes lugares. “Sempre me destaquei pela facilidade para lidar com os desafios e me adaptar a diferentes situações”, diz. “É também a habilidade que me fez enfrentar a vida de novo em uma cadeira de rodas.”

Recentemente, a executiva também recebeu a responsabilidade de liderar o grupo de afinidade de pessoas com deficiência na Nestlé em toda a América Latina. O CEO da companhia estabeleceu que até 2025 todos os países da região tivessem ao menos 5% de pessoas com deficiência entre os funcionários. “Talvez o propósito de eu estar nessa cadeira seja justamente oferecer mais oportunidades e acessibilidade para as pessoas.”

Abaixo, Kátia Regina compartilha como construiu sua trajetória profissional e se destacou ao abraçar oportunidades em diferentes cidades e países. A executiva também relata sua experiência como uma pessoa com deficiência e analisa a falta de representatividade no mercado de trabalho, além das principais tendências que observa na área de recursos humanos.

Forbes: Ser expatriada estava nos seus planos de carreira?

Kátia Regina: Pessoalmente, sim, mas profissionalmente mais ainda. Quando eu converso com profissionais de diferentes áreas, aqueles que tiveram a oportunidade de fazer um pedaço da sua carreira em outro país tem uma expansão de conhecimento muito diferenciada. E a Nestlé é uma empresa multinacional, então poder falar com propriedade de diferentes culturas vai agregar muito para a minha carreira.
Eu já estava em uma zona de conforto no Brasil e agora vou estar em um país que acabou de mudar o governo, tem a primeira mulher presidente e o Trump voltando para os Estados Unidos. Trabalho com elementos econômicos e financeiros por causa das questões salariais e ter esse tipo de experiência no currículo vai me ajudar a ser uma profissional diferenciada.

Como você recebeu essa promoção para liderar a área de Total Rewards na América Latina?

Fiquei muito feliz porque isso aconteceu menos de um ano depois de eu ter voltado para a empresa. Eu fiquei paraplégica em outubro de 2022, sou uma entre tantas mulheres vítimas da tentativa de feminicídio. Foi uma situação que nunca imaginei na minha vida e que me levou para uma cadeira de rodas.

Fiquei 10 meses afastada para a recuperação e quando eu voltei, em junho de 2023, estava muito insegura, pensava que as minhas competências seriam questionadas, a minha mobilidade tinha mudado e eu ainda estava num processo de entendimento do meu corpo. Mas meu chefe me chamou e disse que tinha uma oportunidade para eu fazer um treinamento na Suíça. Eu pensei ‘acho que você não entendeu que eu estou numa cadeira de rodas’. Mas eu fiz essa viagem e foi bem importante na minha vida e em menos de um ano foi promovida a essa posição.

Depois de se tornar uma pessoa com deficiência, como você enxerga a representatividade de PCDs no mercado de trabalho?

A minha experiência não é a realidade para a maioria das pessoas com deficiência, porque se fosse a gente teria muito mais exemplos como eu no ambiente de trabalho. Eu nem julgo só as empresas porque primeiro a pessoa tem que se aceitar, o mundo não é acessível para nós e exige um esforço gigantesco para sair de casa. Mas eu sou muito privilegiada e comecei a ver que não podia fechar os olhos para isso. Então eu decidi viver para ajudar a movimentar esse mundo e para que as pessoas tenham mais oportunidades, assim como eu tive.

Muitas pessoas com deficiência se descobrem no esporte e nas artes, mas no mundo corporativo ainda existe um longo caminho a ser construído. A Nestlé no Brasil está acima da cota de 5% de pessoas com deficiência [para empresas com mais de 1.001 empregados], mas muitos países não têm esse tipo de legislação. Em alguns, não chega a 1%, mas o CEO da Nestlé estabeleceu que em 2025 todos os países da América Latina tivessem no mínimo 5% de pessoas com deficiência nas operações da empresa.

O que mudou na sua percepção de vida e carreira?

Eu moro em um apartamento confortável que eu achava que era ótimo, mas quando eu cheguei de cadeira de rodas na frente do prédio, não tinha uma rampa para eu subir. E depois eu comecei a reparar em outros prédios que só tinham escadas. Você começa a ver o mundo de um jeito diferente.

Nós viemos para esse prédio da Nestlé em 2018, e eu participei do grupo que pensou em cada detalhe da distribuição dos andares junto com o arquiteto. Um dos conceitos do prédio era ser um prédio acessível e eu tinha 100% de certeza que cumprimos. Mas quando eu vim com a minha cadeira de rodas, eu percebi que ainda não era. Já foram 18 adaptações que foram construídas. Eu sou outra pessoa depois dessa deficiência. Primeiro que o meu nível de tolerância aos problemas ficou muito maior, você coloca os problemas numa outra perspectiva.

Eu falo que tenho duas vidas, antes da cadeira de rodas e depois da cadeira de rodas. Me tornar uma pessoa com deficiência mudou muito a minha questão de resiliência, paciência, adaptabilidade e flexibilidade.

Quando você assumiu a nova posição e por que o México?

Assumi em junho de 2024 e faz mais sentido nesse momento estar no México porque é um mercado de muita representatividade para a Nestlé no mundo. O Brasil ganha em termos de volume de produtos, hoje tem 99% de ingresso nas casas dos brasileiros, mas do ponto de vista de lucratividade, o México é mais representativo porque se destaca pelo café, e não pelo chocolate. Também está sendo criado um hub de tecnologia lá pela proximidade com os Estados Unidos e de mobilidade global, voltado para expatriação.

Os países da América Latina têm características semelhantes, mas fazer a gestão de remuneração em mercados como Venezuela e Argentina é completamente diferente de lidar com Brasil e México, que também enfrentam dificuldades econômicas, mas sem o mesmo nível de volatilidade. A principal semelhança é com relação ao impacto dos benefícios na vida dos funcionários. Em muitos desses países, a saúde oferecida pelo governo não é das melhores e as pessoas têm uma dependência muito grande dos programas oferecidos pelas empresas privadas.

Como foram esses mais de 20 anos de carreira na Nestlé?

Eu comecei na Nestlé como estagiária na fábrica de Caçapava, mas trabalho desde os meus 14 anos. Comecei vendendo limão no carrinho de mão, depois fui para uma empresa chamada Prosoft, em São José dos Campos, quando começaram a vender Pacote Office no Brasil.

Eu estudava Relações Públicas e fui estagiária da Nestlé em 2004 na área de comunicação da fábrica. Em menos de 10 meses fui convidada a me movimentar para o RH para substituir uma pessoa que acabou não voltando para a empresa. A vaga ficou para mim e eu fui efetivada como analista de recursos humanos em 2005. Em 2008, vim para São Paulo numa oportunidade no time de recrutamento e seleção. E aí decidi me inscrever no programa de Trainee da Nestlé. Apesar de já estar na empresa, não tive nenhum privilégio, fiz todos os testes, entrevistas e dinâmicas, mas nessa primeira tentativa eu reprovei. No ano seguinte, tentei de novo e fui aprovada. É muito concorrido, em 2024 foram 47 mil inscritos para 15 vagas. Comecei o trainee em 2010, e precisava ser esse ano porque foi o único em que a Nestlé também abriu uma vaga de Trainee internacional. Quem passasse no processo nacional poderia se inscrever. Eram quase 3.000 inscritos para 8 vagas. E eu passei e fui para a Suíça.

Como foi essa primeira experiência internacional?

Eu nunca tinha entrado em um aeroporto. Foi a primeira vez que eu viajei de avião e também para fora do Brasil. Fui muito sortuda porque naquela época não tinha essa coisa de fazer reuniões e treinamentos online, era tudo presencial, então eu viajei para 18 países em dois anos.

Era um grupo de oito pessoas de diferentes culturas, quase ninguém tinha um idioma semelhante. Eu achava que meu inglês era bom, mas nos três primeiros meses quase não entendia nada que as pessoas falavam comigo. Nos dividiram em grupos e ficamos responsáveis por países diferentes da nossa nacionalidade.

Eu cresci em 2 anos o que eu não tinha crescido nos meus 20. Voltei muito segura de mim, falando da Nestlé com muito mais propriedade. Sair de Caçapava e vir para São Paulo já tinha sido um choque. Porque até então eu achava que a Nestlé era aquela fábrica de mil funcionários, depois descobri que era uma empresa de 20.000 pessoas e muitos negócios, mas quando você vai para o mundo você percebe o que de fato é a maior empresa de alimentos do mundo.

Como isso ajudou a impulsionar sua carreira?

Voltei para o Brasil em 2011 já em uma posição dentro da área de Total Rewards, essa área que envolve remuneração, benefícios, global mobility e qualidade de vida. Em 2012, fui levada para o Espírito Santo, onde fica a unidade da Garoto. Foi numa época bastante crítica porque foi justamente quando a Nestlé estava fazendo a aquisição da Garoto, então participei de todo o processo de integração. Fiquei em Vila Velha até 2015 e depois fui para o Rio de Janeiro. Se você não tem mobilidade, as coisas também acontecem, mas em uma velocidade diferente. Porque quando você tem essas oportunidades, você tem um mundo para percorrer. A única vaga em que eu me inscrevi foi a do trainee, todas as demais foram convites. Voltei para São Paulo em 2017 e no final do ano assumi a diretoria de Total Rewards para o Brasil.

O que te destacou para ir assumindo essas posições?

Um feedback que eu recebi nesses 20 anos de empresa é que eu tenho facilidade para me adaptar a diferentes situações. É também a habilidade que me fez enfrentar a vida de novo em uma cadeira de rodas. Todos esses movimentos que eu fui fazendo para diferentes lugares e posições eram considerados difíceis, tinham questões sindicais, aquisições, problemas culturais e eu fui levada para ajudar a fazer a integração nesses ambientes complexos. Fui escolhida para ir para o México para conectar os mercados e engajar o time porque tenho essa capacidade de colaboração e de lidar com stakeholders e pessoas difíceis.

Como a pandemia afetou o seu trabalho como diretora de Total Rewards?

Quando eu assumi, a Nestlé já tinha programas de saúde e qualidade de vida há mais de 10 anos. Eram muito focados em ambiente de trabalho, felicidade, ambiente pet friendly e família. Com a pandemia, as prioridades mudaram e a gente direcionou todos os esforços para a saúde física e mental do indivíduo.

Começamos a usar ferramentas digitais para chegar em um maior número de pessoas e fizemos o lançamento do nosso aplicativo de bem-estar. Na época não entendíamos muito bem o vírus, mas sabíamos que a imunidade das pessoas fazia diferença e podíamos ajudar os funcionários a construir e manter hábitos saudáveis.

Tudo o que começou na pandemia a gente mantém até hoje. Fizemos um programa de capacitação da nossa liderança nos temas de saúde física, mental, segurança psicológica e felicidade no trabalho. Treinamos quase 500 líderes porque eles precisam ser exemplo para as pessoas. Também criamos programa para cuidadores de pessoas com deficiência, com câncer, doenças terminais, porque muitas vezes a gente se esquece de pensar em quem cuida.

O que você observa de mudanças no RH desde o início da sua carreira até hoje?

A primeira mudança significativa que eu vejo é o empoderamento do profissional nas suas decisões de carreira, de saúde e de vida. Antes, o RH tinha uma responsabilidade muito grande em tomar decisões de desenvolvimento, de promoções e demissões. Hoje eu vejo que esse protagonismo passou para a mão da pessoa. A empresa tem que criar oportunidades, mas a escolha de crescer ou não, se desenvolver ou não tem que ser da pessoa.

Outra mudança significativa foi o tema de saúde. Nos últimos cinco anos isso ganhou relevância dentro das empresas. E faz todo o sentido. O número de pessoas que se afastam por questões físicas e mentais é muito alto, e a empresa tem a responsabilidade de promover um ambiente seguro e saudável não só para os funcionários, mas também para as suas famílias.

Outro ponto é a diversidade. Hoje vejo uma Nestlé muito mais plural, com pessoas da comunidade LGBT, negros, mulheres em posições de liderança e pessoas acima de 50 anos. A gente traz para a liderança a responsabilidade de criar equipes diversas.

E em relação à remuneração e aos benefícios, o que é mais importante hoje?

A parte financeira continua sendo um dos principais elementos para a pessoa tomar a decisão de aceitar ou não uma oferta de emprego, mas é um dos últimos a ser considerado quando a pessoa toma a decisão de sair da empresa. Por muitos anos falamos que o líder leva as pessoas a se demitirem, mas agora a qualidade de vida está sendo um dos principais elementos para a pessoa escolher a empresa em que quer ou não trabalhar. Isso envolve flexibilidade no modelo de trabalho, segurança psicológica e espaço para ter tempo com a família.

Sim, a gente precisa garantir a competitividade salarial, mas a Nestlé e outras grandes empresas estão fazendo esses investimentos para se destacar.

Nos países da América Latina, com cenários econômicos e políticos instáveis, o salário-base representa 60%, 65% do pacote de remuneração, cerca de 10% é composto pelo variável, enquanto entre 20% e 30%, dependendo do mercado, é direcionado para benefícios relacionados à saúde e qualidade de vida.

A trajetória de Kátia Regina, diretora de Total Rewards da Nestlé na América Latina

Formação

Relações Públicas pela Universidade de Taubaté (2007);

Especialização em Gestão Estratégica de Comunicação Interna pela USP (2009);

Especialização em Remuneração e Benefícios Estratégicos pela PUC São Paulo (2018)

Primeiro emprego

Operadora de telemarketing na Prosoft Vale (2001 a 2003)

Primeiro cargo de liderança

Coordenadora de RH na Nestlé Brasil (2012)

Tempo de carreira

Mais de 20 anos

Escolhas do editor

  • demissão
    Carreira

    “Demissão por Vingança” Deve Alcançar Pico em 2025

  • Escolhas do editor

    Betas Vêm Aí: 2025 Marca Início de Nova Geração Alimentar

  • Carreira

    Veja as Profissões em Ascensão e as que Vão Acabar até 2030

O post Após Violência Que Colocou Sua Vida em Xeque, Executiva Assume Diretoria da Nestlé Latam apareceu primeiro em Forbes Brasil.

Adicionar aos favoritos o Link permanente.