Tamara Klink: “Desafiador Foi Lidar com o Medo dos Outros”

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Tamara Klink cresceu. A menina que passou a infância ouvindo histórias de explorações de grandes homens do mar, como seu pai Amyr Klink, voltou sã, salva e esperta – depois de alguns sustos – de mais uma conquista pessoal de gente grande. Com 27 anos e potente repertório náutico e literário, que já incluía travessias em solitário do Mar do Norte e do Atlântico e cinco livros, ela se tornou a primeira mulher a passar isolada todo o longo e escuro inverno polar em um barco preso no mar congelado dos confins do Ártico.

Para chegar a altas latitudes do Polo Norte no seu pequeno veleiro de aço de 10 metros, o Sardinha 2, a jovem arquiteta naval teve que navegar 2.500 milhas náuticas desde a França até a Baía Disko, no oeste da Groenlândia, onde as mudanças climáticas fazem com que cada vez mais icebergs se desprendam das geleiras e botem em perigo os navegadores. Quando o inverno enfim chegou e congelou as águas no entorno do barco, sem ver o Sol ou viv’alma sob temperaturas de até 40 graus negativos, começou o grande desafio pessoal de Tamara Klink: atravessar oito meses absolutamente só.

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Forbes: Você cruzou o Mar do Norte, em 2020, e o Oceano Atlântico em solitário, em 2021. E, de 2023 a 2024, decidiu cortar o Círculo Polar Ártico até ancorar, isolada, durante o longo inverno polar da Groenlândia. Por quê?

Tamara Klink: Depois de atravessar o oceano, eu quis atravessar o tempo. Ver o tempo causar deslocamentos na paisagem. A Groenlândia é uma das regiões da Terra que tem os efeitos mais visíveis das mudanças climáticas, e ali eu poderia identificar os extremos e as transformações que acontecem ao longo de todo o ano no mesmo lugar. E, como navegadora, chegar até ali era a chance de eu dar um passo além nas minhas competências, de me colocar à prova. Comecei a preparação com a travessia da Noruega à França, em um barco pequeno – ou muito precário, como diz o meu pai –, o Sardinha 1, e com ele fiz a travessia do Oceano Atlântico até o Brasil. Ao longo de cada projeto, fui aumentando os níveis de exigência técnica e dificuldades, até subir com o Sardinha 2 para invernar na Groenlândia.

E quais foram os níveis de dificuldade dessas navegações?

Na primeira viagem, optei por uma navegação costeira, com várias escalas, paradas a cada 100 milhas. Eu tinha poucos obstáculos e muita chance de pedir ajuda se tivesse problemas. Aí fui aumentando para 200 milhas por vez, depois 300 milhas. Passei a navegar em áreas onde a meteorologia era pior, mais instável. Cruzei o Canal da Mancha entre muitos navios e correntezas. Depois disso, para atravessar o Atlântico, tive que preparar melhor o Sardinha 1. Cada trecho de navegação tinha mais de uma semana. No pedaço mais longo, Cabo Verde-Brasil, que durou duas semanas, eu não teria como pedir assistência no meio do caminho. Por outro lado, eu navegava em águas quentes, seguindo os ventos alísios, em uma rota de navegação favorável. E onde eu sabia que não ia morrer de frio.

Então era uma realidade bem diferente da que enfrentaria no Ártico, já com o Sardinha 2, depois de partir da França?

Sem dúvida. Dessa vez, parti da França para o Sul da Groenlândia em uma navegação de três dias. No total, foram 26 dias entre o porto francês e o fiorde onde eu fiquei, Qitermmiunnguit, na região de Ilulissat. O frio do Ártico tornou a navegação difícil, e com o agravante de que eu tinha que diminuir ainda mais os períodos de sono. Quando a gente navega em solitário, precisa dormir em pedacinhos. Na travessia do Atlântico, eu dormia de 20 em 20 minutos. Navegando na Groenlândia, esses 20 minutos já não eram possíveis. Para descansar, eu tinha que estudar antes as cartas náuticas para evitar pegar no sono em pontos com maior fluxo de icebergs saindo das geleiras. São lugares com corrente, cartografia precária, variação magnética que pode alterar o piloto automático, muita neblina, icebergs escondidos debaixo do barco. É perigoso, a gente conhece a história do Titanic. O tempo todo você tem que ficar esperto.

Ao chegar no lugar ideal para ancorar o barco, como foi esperar o inverno chegar e ver o mar congelar ao redor?

Essa não é uma mudança linear. O processo avança e retrocede. Em um dia frio e com pouco vento, o mar começa a ter uma fina camada de cristais de gelo. Esses cristais viram panquecas de gelo, que crescem como pizzas e ganham o tamanho de camas elásticas. Quando bate um vento forte, empurra todas elas para o alto mar e o processo recomeça. Placas de gelo vão batendo no casco do barco, movidas pelas ondas. Uma semana depois, tudo pode mudar: de repente entra um vento de sul que traz temperaturas positivas e tudo derrete. Até que o mar começa a congelar de novo, cai neve e você não vê mais nada. A noite vai ficando cada vez mais longa. Nesses dois primeiros meses, eu estava em um tempo fora do tempo. Era como se o tempo tivesse parado e o espaço estivesse se deslocando ao redor. O espaço vinha me visitar, trazia de volta um outro lugar e ia embora.

Além do repertório como navegadora, como você se preparou para a invernagem?

Maturidade não vem de um ano ou dois, é algo que a gente constrói ao longo da vida. E não falo só de navegação. Ter realizado minha primeira travessia com recursos limitados havia me ensinado a fazer coisas do dia a dia, a consertar problemas do barco com as minhas próprias mãos. Meu barco era pequeno, comprado com meu dinheiro, que veio dos direitos autorais dos meus livros. E eu conhecia cada cantinho dele. Foi onde li entre 30 e 40 livros, escrevi e desenhei no passar dos meses. Além disso, me preparei fisicamente, com treino de escalada, remo ergômetro e especialmente musculação para evitar lesões. Eu sabia que perderia musculatura na viagem.

Como você cuidou do seu preparo mental?

Esse foi o pulo do gato. Pelo meu gênero, pelo meu biotipo, pela minha idade e pela minha nacionalidade, muitas pessoas disseram, antes da viagem, que eu não tinha perfil para passar tanto tempo isolada no gelo. Fui exposta a projeções de medo de muitas pessoas, e precisei ter consciência, mensurar esses riscos, questionar se deveria desistir. Teria feito escolhas menos ambiciosas se não tivesse o acompanhamento semanal da psicóloga Nair Pontes. Eu imaginava situações de perigo, como navegar exausta entre icebergs, neblina, mau tempo e vento contra. A partir dessa cena, eu projetava formas de lidar com a situação. Primeiro é preciso separar os medos imaginários dos medos concretos. E se eu tivesse um perigo concreto? E se eu caísse na água, como eu faria para sair?

E você caiu, de fato, na água. Aquele foi o momento em que você mais correu riscos na invernagem?

Acho que não. Foi o momento em que a morte se tornou algo concreto, muito visual. Eu tinha saído para caminhar, como fazia todos os dias por 3 a 4 horas, e em algum momento o gelo cedeu. Na hora em que eu me vi na água, não perdi o controle. Pude usar o instinto de autopreservação para concentrar minhas forças e me tirar de lá. O gelo é muito liso, a mão escorrega. Consegui encontrar pontos de apoio em que o gelo estava podre, em camadas, e ali fiz buracos com os dedos até conseguir me arrastar para cima de uma pedra. Pulei da rocha para uma parede lisa, onde fiz furos usando um instrumento inuit, dos nativos da Groenlândia. Eu só consegui escalar a parede porque tinha treinado escalada. Antes da minha roupa e das minhas pernas congelarem, fui correndo para o barco vestir roupa seca. Fazia 26 graus negativos.

Oito meses de isolamento, três meses sem ver o Sol, temperaturas de até 40 graus negativos: a solidão, a escuridão e o frio foram seus maiores desafios?

Para mim, esses são só dados concretos do lugar. Desafiador mesmo foi lidar com os medos dos outros, avaliar os riscos num lugar que para mim parecia fofo e gerir o consumo dos recursos finitos. Eu tinha que administrar a alimentação com 1 quilo de alimento por dia, por exemplo. Cuidar dos recursos finitos, na verdade, é um desafio próximo do que a gente está vivendo no planeta Terra, né? Só que em escala maior.

Ser filha de Amyr Klink é um fardo?

Já não sinto um peso. Senti no começo, porque ser filha do meu pai me tirava o direito de errar. E quando a gente tem 15 anos e está aprendendo algo novo, precisa aprender a construir nosso caminho. Erros nos dão limites, principalmente quando a gente faz algo arriscado. Hoje eu reconheço o privilégio de ter tido um porto seguro para onde voltar caso tudo desse errado – caso eu perdesse o barco, eu chegasse a nado ou eu fosse encontrada ainda viva em uma boia salva-vidas. E aí não estou falando do meu pai como Amyr Klink, mas como pai. Muitas pessoas não têm uma família estruturada. Se eu escolhi partir e correr riscos, foi por vontade própria, e não por necessidade.

Você cruzou o Atlântico e viveu uma invernagem polar em solitário como ele. Vai dar agora a volta ao mundo e continuar seguindo esse caminho?

Não falo ainda das viagens futuras, minha base agora é a Groenlândia e tenho um livro e um filme sobre a invernagem para produzir. Mas posso dizer que fez toda a diferença ter sido apresentada ao universo da navegação muito cedo. Antes de eu saber ler e escrever, eu tive acesso às histórias que meu pai contava, e elas me encantaram. Contar histórias é, ao mesmo tempo, algo muito poderoso e muito perigoso. Porque nos faz desejar. Meu pai teve, óbvio, muita influência, muito impacto e me inspirou muito. Mas não bastaria ser filha do meu pai para eu acreditar que também podia navegar no meu próprio barco, assim como não basta ter um pai astronauta para acreditar que você pode ser astronauta quando você é mulher.

E sua história já é diferente da dele pelo simples fato de você ser uma mulher fazendo isso, certo?

Sim, não temos o mesmo gênero. O olhar que a sociedade tem sobre as mulheres é outro. E as nossas possibilidades dentro do que a sociedade aceita são outras. Fazer o que eu faço hoje é uma conquista maior das outras mulheres do esporte e do ambiente selvagem do que do meu pai. Na navegação, não importa de quem você é filha, qual seu gênero, qual a sua cor da pele, de onde você vem… O mar não vai ser mais doce ou mais bravo em função da sua experiência ou da sua simpatia. Então, nessa experiência em solitário no mar, não existia pressão ligada a como a sociedade me vê. Tinha só eu e o que eu era capaz de fazer com os objetos que eu tinha e com os limites do meu corpo, que são muitos. Para uma mulher, é muito libertador estar no mar e ter a chance de navegar.

Você terminou a invernagem saudosa do convívio das pessoas?

Saudosa eu não sei, mas com certeza mais consciente da importância de conviver. Entendi que viajar em solitário é a minha zona de conforto. A maior surpresa que eu tive ao receber meu namorado no barco, quando passou o inverno, foi lidar com alguém que discordava de mim. Porque, durante oito meses, ninguém discordou. Mas é do ser humano, faz parte da convivência. Só a partir das discordâncias, talvez até mais do que das concordâncias, é que a gente cresce.

Para encerrar, você poderia descrever a cena de uma memória afetiva marcante da invernagem?

Um dia, quando a primavera estava voltando e com ela o Sol, eu saí do barco. A banquisa polar ainda estava bem espessa, com mais de dois metros de gelo, e decidi abrir minha cadeira de acampamento ali. Fiquei sentada olhando para o céu. Pensei que se o paraíso existisse, ele devia parecer com aquilo. E que se eu morresse – eu amo viver –, eu não teria nenhum arrependimento. A minha vida já tinha tido sentido.

Reportagem publicada na edição 124 da Forbes, lançada em outubro de 2024.

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