Como os imigrantes alemães se preparavam para a festa do Natal no Brasil

As áreas de colonização alemã no Brasil mantêm um profundo vínculo com as tradições do Natal trazidas pelos imigrantes alemães que chegaram dois séculos atrás em busca de uma vida melhor.

E não se trata apenas da celebração solene e da alegria da véspera do dia 25 de dezembro – há um amplo ritual que começa semanas antes, que prepara os lares, as pessoas, em especial as crianças, para o encantamento associado à grande festa da Cristandade.

Como os imigrantes alemães se preparavam para a festa do Natal no Brasil

Renate e o esposo mantém as tradições germânicas vivas – Foto: Arquivo Pessoal/Reprodução/ND

“Há muitas tradições natalinas que permanecem vivas até hoje em nossa região”, diz a aposentada Renate Odebrecht, de família muito tradicional no Vale do Itajaí.

“Todas elas tiveram origem no fato de que o Natal na Europa é na época do inverno. Não há trabalho na lavoura, o gado está resguardado debaixo de um teto e as pessoas passam mais tempo dentro de casa, podendo fazer a limpeza geral e o preparo das iguarias do Natal”, acrescenta.

Legado europeu

Seja no Vale, seja em Joinville ou em outras áreas de Santa Catarina que receberam imigrantes alemães, os usos e costumes relativos ao Natal tiveram e têm uma força extraordinária.

As pesquisadoras Hilda Anna Krisch e Edith Wetzel fizeram um levantamento, ainda na década de 1970, registrando esse legado e deixando relatos ricos em detalhes acerca das tradições natalinas vinculadas à cultura dos europeus que chegaram ao Estado a partir de 1829.

Os ritos pré-natalinos criavam um clima de expectativa em relação à data. Um elemento essencial é a Coroa do Advento (“Adventskranz”), tradição que consiste em um círculo de ramos verdes e quatro velas, acesas uma a uma em cada domingo das semanas que antecedem o Natal.

Decoração natalina é tradição da família de Renate Odebrecht – Foto: Arquivo Pessoal/Reprodução/ND

A simbologia remete a elementos e cores que representam a vida, a esperança, o perdão, a paz que o Menino Jesus veio trazer e o amor de Deus pela humanidade.

Hilda e Edith destacam a tradição do pinheirinho (“Tannenbaum”), que se originou na Alemanha e foi adaptada ao Brasil com o uso da araucária, que a maioria das famílias plantava no quintal e que, cortada todos os anos, brotava novamente, garantindo uma árvore para o Natal seguinte.

O pinheirinho era enfeitado com bolas coloridas de vidro, correntes feitas de papel e velas coloridas. Embaixo da árvore eram colocados os presentes, motivo de grande expectativa e ansiedade por parte das crianças durante o período anterior ao Natal.

Decoração natalina é tradição da família de Renate Odebrecht  - Arquivo Pessoal/Reprodução/ND

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Decoração natalina é tradição da família de Renate Odebrecht – Arquivo Pessoal/Reprodução/ND

Decoração natalina é tradição da família de Renate Odebrecht  - Arquivo Pessoal/Reprodução/ND

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Decoração natalina é tradição da família de Renate Odebrecht – Arquivo Pessoal/Reprodução/ND

“A porta era mantida fechada para as crianças não entrarem”, dizem as pesquisadoras. “No anoitecer, o pai tocava uma campainha, abria a porta e a família, admirada, via a árvore com as velas acesas”. Era a hora de cantar a “Noite Feliz”.

Em seguida, cada um procurava seu presente, comia-se “pfefferkuchen” e os pequenos corriam para as ruas para mostrar o que haviam ganhado para os amigos e vizinhos.

Anúncios antigos mostram os produtos usados na tradição natalina - Reprodução/ND

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Anúncios antigos mostram os produtos usados na tradição natalina – Reprodução/ND

Anúncios antigos mostram os produtos usados na tradição natalina - Reprodução/ND

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Anúncios antigos mostram os produtos usados na tradição natalina – Reprodução/ND

Das nozes jogadas pela janela ao álbum de poesias

A pesquisa de Hilda Krisch e Edith Wetzel na região de Joinville mostra alguns rituais dos descendentes de imigrantes.

O Papai Noel (“Weihnachtsmann”), geralmente um amigo das famílias, ia de casa em casa, com traje típico, e via os presentes que as crianças ganhavam, não sem prometerem ser sempre obedientes aos pais. “Às vezes, o próprio Papai Noel trazia os presentes”, elas contam.

Para o artista plástico blumenauense Reynaldo Pfau, a véspera de Natal era “o dia mais longo do ano”. No fim da tarde, chegavam famílias amigas para o jantar: salada com batata, pepino, beterraba, “rollmops”, uma ave assada, pão caseiro, queijos e outros frios. Depois todos iam até o piso superior, onde ficava a sala do Natal.

Decoração natalina é tradição da família de Renate Odebrecht – Foto: Arquivo Pessoal/Reprodução/ND

“Mal conseguíamos cantar a ‘Noite Feliz’, com o coração saindo pela boca”, lembra Reynaldo. “A porta se abria e a árvore de Natal estava esplendorosamente ornada com algodão, simulando a neve, fios laminados de cor prateada, enfeites de vidro de todas as cores e formas e velas coloridas acesas afixadas em suportes de metal, proporcionando um ambiente de pura magia.”

O presépio era o ponto alto – Maria, José, o Menino Jesus, os Reis Magos, os pastores, os animais e a estrela de Belém.Com a família na cozinha, o pai jogava pela janela um punhado de nozes, assustando a criançada. Elas catavam as frutas, quebravam e comiam, sem deixar de agradecer: “Obrigado, Papai Noel!”.

Empresas produziam peças para presépios, enfeites e árvores de Natal. Uma indústria de Joinville, nos anos 1950, se apresentava como “a primeira fábrica no Brasil de pinheirinhos artificiais”.

Um costume comum era dar às filhas um álbum de poesias – livro encadernado com folhas em branco com dedicatória dos pais e um poema que transmitia amor e bons conselhos. As meninas o passavam para tios, primos, professores e amigas, que acrescentavam um poema e o enfeitavam com estampa acetinada. “Esse álbum era uma recordação para toda a vida”, afirmam as pesquisadoras.

Decoração natalina é tradição da família de Renate Odebrecht – Foto: Arquivo Pessoal/Reprodução/ND

Um calendário para marcar a aproximação do grande dia

Um elemento essencial na tradição natalina dos alemães é o Calendário do Advento (“Adventskalender”), uma estrutura com compartimentos numerados (janelinhas) que são abertos, um a um, de 1o a 24 de dezembro, revelando uma surpresa que pode ser um chocolate, um biscoito ou uma mensagem escrita.

Como a Coroa do Advento, o calendário é uma herança dos luteranos que se consolidou junto às comunidades germânicas dentro e fora da Alemanha. Ele pode ser de feltro, papel ou madeira e foi incorporado, por sua essência simbólica de preparação para o Natal, também pelos imigrantes de outras etnias que se estabeleceram no Brasil.

“Este ano vai ter uma edição bilíngue, em homenagem aos 200 anos da chegada dos alemães ao Brasil”, diz Renate Odebrecht, que destaca também o papel simbólico das velas nos ritos de Natal, porque é em torno delas que a família se reúne.“Mesmo os que não são cristãos se sentem envolvidos por este encanto que transcende a época antes do Natal”, afirma.

“O aroma inconfundível dos biscoitos – cravo, canela, noz moscada, kardamon – e do stollen (o panetone alemão) cheio de passas, frutas cristalizadas e nozes, mais um calicezinho de aguardente, é bom demais.”

Ritual envolvia toda a família

Reynaldo Pfau conta que o Natal obedecia a um ritual que marcou toda a sua família. Na semana anterior à data, um homem de carroça trazia a carga de “tannenbaum”, com árvores que todas as famílias da rua adquiriam.

A partir do momento em que seu pai fixava o pinheirinho, a sala era trancada para ser aberta só na noite de Natal. Em casa, a Coroa do Advento era feita com folhas de “tannen” sobrepostas, amarradas com arame. Ao seu redor se passava uma fita vermelha e se prendiam quatro velas vermelhas.

Renate Odebrecht com o papai noel – Foto: Arquivo Pessoal/Reprodução/ND

As famílias acendiam as velas a cada domingo do Advento, cantavam e rezavam o Pai-Nosso. As mães preparavam a massa para as bolachas, que ganhavam formas de estrelas, corações, pequenos animais, botas, sinos e bonecas.

Depois, as bolachas (“lebkuchen”) eram assadas em forno a lenha e confeitadas, com a ajuda das crianças. “Que festa poder lambuzar os dedos e experimentar a cobertura açucarada!”, recorda Pfau. Uma bebida bastante consumida era a “ingwerbier”, feita de gengibre.

Todos os rituais de preparação para o Natal incluíam a família inteira – dos avós aos netos. O presépio exigia a busca de musgos, barba de velho e pequenos troncos na mata, e sua confecção era feita na surdina e com as portas fechadas.

Quando os pais saíam sozinhos, de carro, os pequenos sabiam que tinham ido comprar os presentes, mas agiam como se não soubessem de nada – e a ansiedade pela noite de 24 de dezembro aumentava ainda mais.

Pequeno glossário

  • Lebkuchen – biscoito feito com diversas especiarias que proporcionam um “aroma do Natal” nas casas
  • Pfefferkuchen – biscoito original dos imigrantes nos primeiros natais das colônias, feitos apenas com o que havia aqui, como gengibre e mel
  • Ingwerbier – cerveja de gengibre produzida para as festas de Natal
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