Opinião | Ein Prosit Oktoberfest: a ressaca que a gente finge que não existe

Sabe aquela história do “faça o que eu digo, mas não faça o que eu faço”? Pois é, até acho que deve ser da natureza humana… Raul Seixas já cantava em preferir ser “uma metamorfose ambulante”, uma máquina de contradições. Por aqui, em Blumenau, a gente elevou este negócio a nível de doutorado. Pense comigo: somos craques em torcer o nariz para umas coisas e fazer vista grossa pra outras. Principalmente quando o assunto é o nosso querido, idolatrado e jamais contestado chope.

Calma! Não fique nervoso. Prometo não colocar água quente no copo de ninguém. Também sou um apreciador deste líquido sagrado nas ruas e pavilhões da terra da icônica Oktoberfest. Se o chope é rei, a geladinha é a rainha e o culto ao álcool assume proporções quase divinas.

Somos a capital nacional da cerveja, que se enfeita, abraça a tradição germânica e, durante dias, parece esquecer qualquer sombra de preocupação. Beber não é apenas socialmente aceito; digamos que é celebrado com ares de quem participa de um ritual coletivo. Se bobear, em algum tempo, algum vereador emenda na lei orgânica como obrigação social.

O caneco ergue-se como uma bandeira, gritando “Ein Prosit”, enquanto a frase “aprecie com moderação” flutua pelo ar —vazia, solta, tão vaga quanto o conselho de um médico. Negar um gole é um sério risco: de ser deportado para Brusque (com todo respeito aos brusquenses, claro). A cerveja é nossa cultura, nossa tradição, nosso orgulho.

Bom mesmo seria se, além de encher copos e pulmões de orgulho, chegasse até a cabeça os efeitos de muitas informações sobre o álcool, os riscos associados da ingestão, tanto para o corpo e como para sociedade. A ciência confirma que bebidas alcoólicas, ainda que ingeridas em baixas quantidades, afetam o comportamento dos mais diversos órgãos vitais. A Organização Mundial da Saúde (OMS) estima que, anualmente,  4% de todas as mortes do mundo tenham no consumo de álcool a causa principal.

Paradoxalmente, o líquido que ajuda a desinibir e animar os festeiros, é o que mais contribui para ampliar os registros de violência. Lembra daquele papo do início deste texto, sobre contradições? Volto para apontar mais uma: causa ojeriza, carecas arrancam os cabelos só de ouvir falar… mas, a verdade é que um copo de cerveja provoca mais problemas de violência para comunidade que um cigarro de maconha. Um pânico se instaura à menção da erva, como se ela fosse a porta de entrada para todos os demônios e desgraças da humanidade. Há quem se esqueça que o álcool é o principal ator no palco da violência, especialmente a doméstica.

Dados revelam que o consumo de bebidas alcoólicas exacerba o cenário de agressões. Consta que mais de 70% de todos os registros do país de brigas, desentendimentos e crimes possuem o álcool como fator que desencadeou a ocorrência.

A discussão sobre o impacto do álcool na violência ainda caminha lentamente, quase com o mesmo ritmo compassado de um bebedor que tenta se levantar após horas de festa. E não é só por aqui. Veja, a maior parte dos 1 milhão presos no Brasil, curiosamente,  é formada por pessoas com porte igual ou menor que 50g de alguma droga ilícita, especialmente a maconha. Contudo, apenas observado o mercado de cerveja, por exemplo, o produto continua à disposição em mais de 1,2 milhão de pontos de vendas pelo país, sem grandes restrições, sem questionamentos maiores.

Um experimento bastante interessante de restrições ao consumo de álcool ocorre em Diadema, lá em São Paulo. Eles tiveram uma ideia “absurda” de fechar os bares às 23h. Resultado? A taxa de homicídios caiu 80% na cidade.

Parece até brincadeira, mas os dados continuam batendo na nossa porta como aquela ressaca do dia seguinte. O álcool está presente em mais de 60% dos casos de violência doméstica registrados no país. É tipo aquele amigo que sempre arruma confusão na festa, mas a gente continua chamando porque… bem, porque sim.

Uma pesquisa recente da FURB traz à tona a dura realidade da violência contra a mulher blumenauense. Embora não tenha verificado a situação específica de casos associados ao álcool, é possível compreender a urgência revelada de aprofundar a atenção ao tema. O levantamento explica que 60,8% das mulheres já sofreram violência psicológica. Pior: 81,5% conhecem pelo menos uma mulher que passou pela mesma situação. E tem mais: 70,7% conhecem alguém que já sofreu assédio sexual e metade das entrevistadas respondeu que já sofreu este tipo de violência.

E assim vamos levando, fingindo que está tudo bem. Porque questionar o álcool em Blumenau é quase um sacrilégio. É mais fácil afirmar que a terra é plana do que sugerir que talvez, só talvez, a gente precisa compensar nossa relação com a bebida. Afinal, neste lugar onde as estatísticas de violência passam despercebidas, segue a balada dos canecos cheios e aplausos desavisados.

Enquanto isso, a gente continua brindando: à saúde! (Mas que ironia, né?). À alegria! (Mesmo que ela dure só até o fim do efeito). À tradição! (Porque tradição a gente não questiona, só cultua).

Acho que o velho Horácio Braun, se estivesse vivo, diria alguma coisa como: “o mundo dá tantas voltas que até me deixa tontinho”. Será que é só “das voltas do mundo” que ficamos atordoados, ou tem um pouquinho de chope no meio dessa história?

Ein Prosit! (Ou seria “Ein Problema”?)

PS: A reflexão fica para depois do último gole é: mais uma semana começa. Aprecie com moderação.  E se depois dessa crônica eu aparecer caído em uma sarjeta você já sabe: foi overdose… de guaraná, obviamente.

Tarciso Souza, jornalista e empresário

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