
sob o domínio do medo
coluna de opinião da série Foto em Foco
Márcio Pannunzio, texto & fotos
Esse é o título abrasileirado de Sraw Dogs, filme de 1971, dirigido por Sam Peckinpah. Nele, o protagonista David Sunmer, boa praça e pacato matemático interpretado por Dustin Hoffman se agiganta numa ferocidade devastadora e aniquila magistralmente a escumalha que o assediou. Esse filme vem à lembrança agora, diante da reação corajosa e combativa do professor ilhabelense César Augusto Mendes Cruz frente à situação que ora vivencia.
É evidente que César, de temperamento amistoso e calmo, jamais sairia chacinando seus opressores como fez o David Sunmer num banho de sangue soco no estômago. Mas ao enfrentá-los destemidamente tendo como únicas armas a sua retidão moral e a sua firme convicção da importância do seu papel de educador, evidenciou com a sua fala segura, a impropriedade deles. E assim os desarma sob a ótica da sensatez.
E esse título, sob o domínio do medo, vem muito a propósito diante do que nos contou César. Muita gente em Ilhabela, desgraçadamente, gente da área da educação, área vital para a formação da cidadania, vive aqui sob o domínio do medo.
Com a palavra, o professor César.
“Então, as pessoas têm medo de retaliação, as pessoas têm medo de represália. Eu também tenho medo, mas o que tenho de dizer é o seguinte, eu já sofri assédio moral aqui. Em outra circunstância, uma chefia da secretaria de educação mexeu na minha avaliação probatória e mandou reduzir a minha nota. E eu já disse que não vou mais tolerar esse tipo de situação, porque eu não prestei concurso público, não passei por uma seleção dificílima para ser tratado dessa forma. Por outro lado, porque boa parte das pessoas se silenciam? Porque nessa cidade boa parte das pessoas tem ligação com a prefeitura. Eu fui procurado no privado por mães que me apoiam, mas não podem se pronunciar porque trabalham na prefeitura em cargo comissionado e tem medo de perder o cargo. Então o aparelhamento da máquina pública em Ilhabela dificulta que as pessoas se pronunciem. Ou elas são comissionadas ou são pessoas efetivas que têm lá alguma promoção com gratificação temporária. As pessoas têm medo, né, de sofrerem no bolso. O que aconteceu comigo? Meu salário reduziu pela metade por causa disso daí. A questão é que esse medo está perpetuando uma cultura de assédio. Já tivemos denúncias de assédio no Ministério Público do Trabalho que foram arquivadas porque foi um ou dois. Nós sabemos que foram muito mais. As pessoas têm receio de se pronunciar porque a cultura do assédio já está naturalizada aqui. Os próprios gestores que exerceram assédio contra mim, já provavelmente sofreram assédio. Por isso eles acham normal. – Ah, não foi muito bem assim; a gente foi só conversar -. Porque para eles que sofreram assédio, talvez até piores do que o que sofri, é normal isso. Então eu não normalizo esse tipo esse tipo de cultura e eu não estou mais disposto a adoecer, porque o que acontece nessa cidade é isso: doença. ”
Por doente a educação insular poderia merecer especial atenção do poder legislativo e para isso, muito bem-vinda seria a criação duma comissão parlamentar de inquérito sobre a educação municipal.
Todavia, a câmara recentemente aprovou por maioria acachapante, 10 a 1, as contas municipais de 2021 rejeitadas pelo Tribunal de Contas do Estado de São Paulo. O argumento de que, por ser reeleito pela maioria da população, isso significaria que ela mesma aprovaria essas contas apesar do parecer desfavorável do Tribunal, foi invocado na ocasião. Essa aprovação polêmica sugere que a câmara é majoritariamente governista e, portanto, pouco disposta a constranger a administração que apoia a investigando.
Sim, é certo que o prefeito foi reeleito. Mas a maioria entendida como parte maior que a metade do todo, é uma maioria que não inteirou nem um por cento a mais. A outra metade da população, não votou nele. Então como é que ela fica? Sem lei, sem fé, sem rei? Sem CPI?
Bom, pode ser que da tribuna alguém dirá, solenemente, “isso pode passar despercebido”.
Retomando a fala do Cesar. “Professor de ciências que foi ameaçado, né? Chegou a ter que ser afastado porque tinha pai ameaçando agredi-lo fisicamente, inclusive também e naquela ocasião instigados por uma vereadora. Então, o aparecimento do vereador Gabriel Rocha nessa história não é fortuito. Infelizmente não é a primeira vez. Nós tivemos casos já de outros vereadores desse escopo ideológico atacando professores aqui na Ilhabela, né? Não aparecem para resolver os problemas estruturais, mas aparecem para nos colocar na fogueira.”
Uma câmara que temerariamente ataca educadores em nome de ideologias fundamentalistas, reacionárias, teria capacidade de investigar essa denúncia duma doença que estaria pondo em risco a educação municipal? Talvez conviesse antes disso, vivendo numa situação surreal como bem convém a aqui é Ilhabela, criar uma CPI para averiguar a existência dum comportamento blasfemador de membros da própria instituição responsável por criar essa CPI. Examinar a possível ação pestífera desses vereadores e vereadoras extremistas que achincalham educadores da cidade e podem, ao agir dessa maneira linchadora, contribuir para colocar suas vidas em perigo.
Qualquer umas dessas CPIs prosperaria? Se a câmara preferir jogar o mensageiro da malfeitoria na fogueira que parece ela própria acender e alimentar, ao invés de se debruçar na mensagem perturbadora que ele traz, na aqui é Ilhabela é melhor esperar sentado. Ou deitado, descansando, dormindo.
Como César poderia estar fazendo à espera de respostas da secretaria municipal da educação aos questionamentos que lhe encaminhou. Mas não. Se a secretaria e a câmara não o escutam, há fora da aqui é Ilhabela quem o faça e se espante e se indigne. Matéria na Universo Online do grupo Folha, relatou o seu caso e aí, parece que o milho no fundo da panela quente de pipoca começa a estourar num metralhar com potencial de incomodar quem escolhe silenciar. Inspirados e estimulados pelo artigo, um montão de jornais e sites de notícias o repercute e sim, isso pode virar escândalo de estatura nacional.
César, por seu perfil de educador progressista, destoa da incivilidade duma escola cívico-militar.
Nas suas palavras, “então, para algumas famílias, vem essa ideia de que uma escola militarizada com pessoas que seriam da PM ou de qualquer outra instância militar é mais segura, né? Contém a indisciplina. Não é o que eu vi. Não é, não é o que eu vi. O que eu vi foi perseguição. O que eu vi foi poucas famílias se arrogando ao direito de privatizar a educação que é pública e é financiada com os impostos de todos nós. O que eu vi foi um elitismo de querer uma educação segura e próspera pro seu filho, excluindo o filho do outro que vai pra escola vizinha. E o que eu vi da disciplina, é querer minar a capacidade criadora desses estudantes para disciplinarizar e docilizar corpos que antes de pensarem por si mesmos vão obedecer, né? Obedecer as ordens sem questionar, sabendo que há uma punição severa caso não obedeçam, não é? Então esse é o investimento.”
Investimento a fundo perdido, haja vista que especialistas em educação não se cansam de nos alertar da falácia desse modelo quebra mente, quebra humanidade, quebra criatividade. Nesse ponto o depoimento de César transcende o local e se insere nesse relevante debate nacional sobre a nocividade desse tipo de escola.
César, ultra qualificado, mestre agora doutorando na universidade em que se formou, poderia estar dando aula em colégio particular de ricaço e ganhando um salário polpudo. No entanto, escolheu lecionar na rede pública. Explica o porquê.
“É minha obrigação denunciar o assédio para que não aconteça comigo e nem com qualquer outro. Então, quero dizer para as pessoas que estão me assistindo, se você sofrer o assédio, cria coragem, busca a rede de apoio pra denunciá-lo, porque assédio só cessa quando ganha publicidade; senão, ele vai num crescente. Como eu já disse, nessa escola eu sou o quarto ou quinto professor assediado e já sou assediado pela segunda vez por essa rede de ensino. Então se eu ficar calado, o assédio não vai cessar; muito pelo contrário, ele vai piorar, ele vai prejudicar os meus estudantes. Porque um professor que não tem confiança no lugar de trabalho dele, ele não vai exercer bem as suas funções e os alunos vão deixar de aprender. E aí, o prejuízo pedagógico para esses estudantes é muito maior, né. Então, só eu estou falando porque só eu tenho a legitimidade agora nesse momento para falar. Eu não tenho rabo preso com ninguém. Eu não tenho cargo comissionado. Eu não dependo de cargos políticos para a minha subsistência. Eu estou aqui representando um direito fundamental do povo brasileiro que é a educação e a educação de qualidade. Eu que fui professor em escola privada, que já dei aula para filho de embaixador, já dei aula para pessoas de muito dinheiro, para CEOs, decidi colocar o conhecimento que tenho, que foi financiado pelo povo na universidade pública a serviço desse mesmo povo. Mas infelizmente, eu estou encontrando pessoas de pouco caráter e pouco conhecimento nos cargos de gestão que estão inviabilizando o meu trabalho e estão inviabilizando o direito dos estudantes de terem acesso a ele.”
Essa fala evidencia uma escolha humanitária. Benemérito, César retribui o gasto público da sua formação universitária, lecionando para quem mais precisa; para quem sobrevive como povo e não como integrante da elite endinheirada. E desabafa:
“Não é justo, né, que nem eu e que nem ninguém que está na educação passe por esse processo. Não é justo que as pessoas que estão aqui batalhando para que a educação continue acontecendo em circunstâncias adversas, elas sofram retaliação de gente tão mal formada, de gente tão precária intelectualmente, né?”
César não nomeou a doença que aflige a educação municipal, a doença que acomete a cidade por causa do aparelhamento da máquina pública. Qual seria esse nome?
Iluminismo foi o nome da corrente intelectual que revolucionou a cultura europeia e foi abraçado e defendido por Goya. Aquele artista velho e surdo que pintou na parede da sua cozinha aquele velho gigante devorando com o que ainda devia ter de dente um corpo humano inerte. Uma fortíssima alegoria da passagem implacável do tempo.
Espanta que o vereador pefelista paraninfo em tudo quanto é formatura da escola cívico-militar talvez não saiba isso? Não, pois afinal ele mesmo nos advertiu da tribuna que podia não saber história e pode bem ser que muito menos de arte entenda.
Iluminismo é um nome bonito. Sua raiz é o substantivo luz. Essa potente radiação eletromagnética que afasta a escuridão. É na escuridão que nascem nossos piores pesadelos; trevas escondem monstros, rezam as lendas. Apesar do fogo, imaginamos o inferno sempre como um lugar sombrio, cavernoso, onde a luz solar nunca chega.
Pois então, qual nome caberia a essa doença maligna que priva o estudante pobre do direito assegurado na lei maior e na lei mãe de desfrutar duma educação de qualidade? Tão boa quanto aquela que o filho do rico recebe na escola particular?
Qual seria o nome dessa doença que acomete a cidade e faz tanta gente viver sob o domínio do medo?
Informe-se melhor assistindo a entrevista feita pelo DCM na íntegra:
A entrevista com o professor César durou mais de uma hora. Começou no 12:40 e terminou no 1:38:00.
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