Os Estados Unidos e sua estratégia comercial

Por Julio Cesar Marcellino Jr, doutor em Direito, professor e advogado.

Ao observar o desempenho da economia dos Estados Unidos (EUA) nos últimos 20 anos, pode-se perceber um vigoroso crescimento decorrente do processo de globalização financeira ocorrido entre a queda do bloco soviético e a crise bancária do subprime de 2008. Os números são impressionantes. Basta dizer que há vinte anos o PIB per capita dos EUA era um pouco superior ao dos países da Zona do Euro. Hoje o PIB per capita dos EUA representa o dobro em relação à Europa. Para se ter uma ideia, o Mississipi, Estado mais pobre dos EUA tem PIB per capita superior ao da França.

Esse crescimento não ocorreu por acaso. Os norte-americanos optaram por um modelo calcado na financeirização da economia, tendo o dólar como moeda de reserva internacional. Houve sucessivas fases de evolução desde a assinatura do acordo de Bretton Woods (1944), em que o dólar substituiu o padrão-ouro, chegando até os dias de hoje como referência monetária hegemônica.

Mas se os EUA enriqueceram tanto nas últimas décadas ostentando números impressionantes, por que agora se lançam numa guerra comercial tão contundente impondo altas tarifas aos demais países? Seria apenas para tentar conter o crescimento ou desacelerar a rival China? Não parece que a questão seja tão simples. Vale a reflexão sobre o tema, iniciando por seu diagnóstico.

O que está em jogo não seria apenas uma disputa comercial entre China e EUA. Claro que ela não pode ser desconsiderada, mas a questão parece ser mais profunda. O que move os EUA nessa empreitada comercial insólita é a necessidade premente de rever o arranjo econômico e monetário vigente. Este se tornou obsoleto e, para além de trazer grandes vantagens econômicas aos EUA, também os tornou vulneráveis no atual jogo internacional.

A verdade é que o modelo de financeirização da economia norte-americana trouxe consigo problemas e distorções que foram sendo colocados em segundo plano ao longo dos anos. Um deles é a desindustrialização. Com a dolarização da economia mundial e a desvinculação entre dólar e ouro decidida unilateralmente desde 1971, os EUA passaram a financiar seu consumo interno e sua dívida pública com capital externo. Os americanos não precisam produzir o que consomem. A fabricação ficou a cargo dos outros players mundiais. China, nesse sentido, destacou-se por seu bônus demográfico e baixo custo de produção.

Esse modelo, como dito, fez os EUA enriquecerem, mas a um alto preço e risco. O país além de se desindustrializar, acumulou um déficit na balança comercial recorde, por importarem muito mais produtos do que exportam. Mas esta não é a única conclusão do diagnóstico de Scott Bessent, secretário do Tesouro norte-americano. Os EUA acumularam nos últimos anos o impressionante déficit de U$ 26 trilhões na posição de investimento líquido internacional, que considera tudo o que os residentes possuem de investimentos no exterior e tudo o que os estrangeiros têm de investimento dentro dos Estados Unidos.

Isto significa que os estrangeiros possuem investimentos em dívida pública (treasures), dívidas corporativas, ações, imóveis e outros ativos em nível muito superior ao que os norte-americanos investem no exterior. Esse déficit de U$ 26 trilhões representa aproximadamente 88% do seu PIB, segundo o economista Fernando Ulrich. Algo insustentável a médio e longo prazo. É isso que preocupa Bessent e Trump.

Estão preocupados com o modelo econômico vigente que se apresenta como insustentável quando considerado o déficit da balança comercial, o déficit de investimentos internacionais e a dívida pública, que também é estratosférica. Para se ter uma ideia, a dívida pública federal norte-americana alcança impressionantes U$ 35 trilhões em déficit.

O modelo de financeirização que tornou os EUA a maior potência do século XX é o mesmo que os tornou vulneráveis e inseguros no século XXI. Ainda mais quando se consideram fatores como o crescimento dos países emergentes, a aliança político-econômica dos BRICS e a crescente rejeição dos países emergentes e do Oriente Médio em utilizar o dólar como moeda exclusiva para transações internacionais. A verdade é que o atual governo norte-americano trata esse assunto como uma questão de “segurança nacional”, pois veem-se sem uma estrutura de plantas industriais que seriam fundamentais para um possível esforço de guerra.

A questão que nos faz pensar é se o “tarifaço” norte-americano seria capaz de corrigir o problema. Alguns analistas apontam que não. Sugerem que esse movimento de força, que aflige também aliados históricos, serve muito mais para trazer os grandes players, especialmente a China, para a mesa de negociação visando um novo arranjo monetário. Enquanto isso não ocorre, o que se pode perceber é que já se contabilizam prejuízos econômicos aos dois gigantes da economia. A China, por certo, sai mais prejudicada num primeiro momento. Porém, possui a vantagem de poder gerir melhor a pressão política interna. Na democracia norte-americana, com imprensa livre e poderes independentes, a pressão diante de uma possível crise financeira pode ser bem mais desafiadora.

Não se sabe ao certo o que vai acontecer e quais serão os desdobramentos dessa disputa comercial. Vive-se, quem diria, uma nova “quarentena” que relembra os tempos da pandemia do Covid-19, com empresas e investidores acuados aguardando um por desfecho a contento. EUA e China estão em trégua comercial negociando um possível acordo. Que cheguem logo a bom termo, pois, no jogo do mercado não há nada pior do que a imprevisibilidade e a insegurança.

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