Quem faz arte, adoece menos. Por Robson Benta

Artigo de Robson Benta fala sobre a luta antimanicomial no Brasil e o poder transformador da arte no processo de inclusão social de pessoas com transtornos mentais.

Na caminhada do 18 de maio, teatro e afeto se encontram como forma de resistência e cuidado em saúde mental. Foto: Arquivo pessoal.

A história da luta antimanicomial no Brasil, lembrada sempre no dia 18 de maio, é um movimento que tem como bandeira central a defesa da reforma psiquiátrica. Vale alertar, desde logo: a reforma, que reorienta a relação da sociedade com as pessoas que têm algum transtorno mental quando atendidas pela rede de saúde, não está sendo cumprida em sua totalidade.

Uma pequena viagem no tempo. Foi na década de 1830 que se propôs, pela primeira vez no Brasil, a ideia de se criar um local “conveniente” para os loucos. Inspirada no movimento higienista europeu, e com aval da Sociedade de Medicina do Rio de Janeiro, a partir de então essas pessoas começaram a ser isoladas do convívio social. A medida defendia que o tratamento só seria possível com a criação de manicômios. Na prática, o que ocorreu foi o aumento da distância entre essas pessoas (fechadas em manicômios/hospícios/asilos de alienados) e a sociedade. E mais: muitas delas foram colocadas ali como punição por uma traição, gravidez indesejada, disputas familiares por heranças, ou mesmo por vingança.

Ainda que não seja possível comprovar que é uma doença, o transtorno mental passou a ser tratado e definido cientificamente como se fosse. As definições cada vez mais pesadas sobre os alienados aumentam a hostilidade da população, inviabilizando qualquer possibilidade de retorno ao convívio social amistoso.

Fomos levados a esquecer que dentro daqueles corpos existiam pessoas que não escolheram aquela condição, e que percebiam, a seu modo, que isso não é certo, não é justo e dói. Quando chegamos a esse ponto, o de anulação do outro, as atrocidades cometidas não têm limite.

Pulo, aqui, a parte dos remédios e da medicalização, a dos eletrochoques e da lobotomia, e, tentando superar a dificuldade de redefinir os conceitos de normal e anormal, avanço para 6 de abril de 2001, quando é assinada a Lei da Reforma Psiquiátrica, ou Lei Paulo Delgado. É a lei que estabeleceu que essas pessoas são iguais em direitos na nossa Constituição e merecedoras de proteção, assistência e saúde garantidos pelo Estado.

Um mundo que nos adoece

A lei é perfeita e define a abrangência da atuação da RAPS (Rede de Atenção Psicossocial) em todas as situações que envolvam problemas de saúde decorrentes de sua condição. Acontece que a etapa final desse processo, que é o retorno ao convívio social, não foi planejada. Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), além da ausência de doenças ou enfermidades, saúde é também um estado de completo bem-estar físico, mental e social. Sem a garantia do acolhimento e a aceitação da diversidade humana não há saúde.

Estamos vivendo em um mundo que pode nos adoecer. Mas como queremos ser tratados? Como posso contribuir para a plena saúde dessas pessoas quando retornam ao lugar a que pertencem? O que me ensinaram sobre os loucos e a loucura?

Sou professor de teatro e resolvi entender meu papel. Ofereci aulas para usuários do serviço de saúde mental (CAPSIJ, SOIS E CAPS III), e passei a conviver com pessoas que estavam voltando a se sentir pertencentes a partir da mudança de paradigmas e com a implementação da lei. Nas caminhadas do 18 de maio, Dia Nacional da Luta Antimanicomial, descobri o que poderia fazer.

Dia de luta, porque a lei não bastou. E, incrível, ainda há quem entenda que essa lei não é boa e que deve ser revertida. Sim, algumas pessoas ainda querem nos fazer acreditar que aquele modelo dos manicômios é o mais adequado.

Louco é pouco

Acabei ficando amigo de muitas pessoas que estavam engajadas nessa luta e resolvi entrar para o movimento, não como ativista político, mas como professor que teve sua vida mudada pela arte e que resolveu trabalhar com aqueles que a maioria não queria como alunos. Em um jogo de ganha-ganha, ficamos todos felizes. Tão felizes que acabamos decidindo formar, em Joinville, um grupo de teatro em plena pandemia da Covid-19, enquanto fazíamos nossos encontros usando computadores ou celulares. O nome do grupo: Louco é Pouco.

Como pessoas que somos, todos, experimentamos e escolhemos fazer teatro juntos. Ouso dizer que, pela definição da OMS, nosso grupo está bem saudável. Com a criação do grupo, nasceu também o tema para a primeira montagem: “O que você sabe sobre mim?” – além do meu prontuário médico, além do que você ouviu falar sobre pessoas com transtornos. Nos conhecemos bastante com os relatos de cada um e o resultado na cena ficou poderoso.

Falamos de pessoas em sua diversidade, fazendo coisas que dão prazer, que escolhem fazer. Toda história merece ser contada. E, como sonhamos alto, sempre, já havíamos pensado em produzir um documentário contando nossas histórias e como chegamos ao teatro. Reunimos uma equipe incrível e, em março, finalizamos as filmagens do longa-metragem “O que você sabe sobre mim?”, que tive o imenso prazer de dirigir ao lado da cineasta Maria Emília de Azevedo. Nossa história vai acontecer na tela e abrir uma janela para falarmos mais sobre saúde, sobre ser saudável. Quem faz arte, adoece menos.


Robson Benta é ator, professor e diretor de teatro.

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