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Ameaçada por tarifas alfandegárias americanas que podem chegar a 200%, a cadeia do champagne está em estado de alerta. Principal mercado de exportação para o precioso vinho espumante, os Estados Unidos podem se tornar inacessíveis, colocando em risco uma indústria emblemática.
A cadeia do champagne enfrenta uma ameaça séria desde que Donald Trump anunciou, em novembro de 2024, a implementação de taxas sobre vinhos e champanhes franceses. A medida, que faz parte de uma guerra comercial transatlântica, pode levar a uma paralisação quase total das exportações para os EUA. No entanto, o país é o principal mercado de exportação da iguaria, com cerca de 27 milhões de garrafas enviadas em 2023, totalizando 810 milhões de euros (R$ 5 bilhões na cotação atual).
Uma sobretaxa desse porte teria efeitos em cascata em toda a cadeia — dos produtores aos profissionais de logística — e poderia gerar um prejuízo de até 4 bilhões de euros (R$ 25 bilhões) na balança comercial francesa. Diante desse cenário, o setor busca por um diálogo transatlântico construtivo para evitar uma escalada comercial de grandes proporções.
A casa tradicional de champagne, Jean-Noël Haton, fundada em 1928, localizada no Vale do Marne, na França, representa os valores de um saber-fazer independente e familiar. Jean-Noël Haton, neto do fundador Octave Haton, fez a Maison passar de 50 mil garrafas produzidas em seus primórdios para mais de 1,1 milhão de garrafas comercializadas atualmente. Seu desenvolvimento se deu graças a uma rede de distribuição baseada na degustação e na recomendação.
Em quatro anos, a casa dobrou seu volume de exportação e está presente em 36 mercados internacionais — mantendo, ao mesmo tempo, seu enraizamento no terroir francês (ainda com 70% das vendas). Olivier Cril, diretor de exportação da casa e primo de Jean-Noël Haton, explica os impactos dessa crise e as estratégias de resiliência adotadas para a Forbes França.
Ele conhece profundamente o DNA da marca e atuou em diversas casas prestigiadas antes de se juntar à empresa da família há três anos. Com vinte anos de experiência no setor champagne, ele conta à Forbes sobre os desafios da cadeia da bebida no atual contexto.
Para começar, poderia fazer um balanço de 2024 e do primeiro trimestre de 2025, e indicar qual é o papel do mercado americano para esse setor?
O ano de 2024 foi globalmente difícil para a cadeia do champagne, com uma queda de 9,2%. Mas na Jean-Noël Haton, observamos uma dinâmica na contramão. Nossa casa familiar e independente registrou um crescimento de 5% a 6% em 2024 com nossa marca principal, o que reflete a solidez do nosso posicionamento, apesar do contexto internacional tenso.
O início de 2025 confirma essa tendência positiva, com um crescimento de 17% nas nossas exportações para os EUA entre janeiro e meados de abril. Esse mercado continua sendo estratégico para nós porque representa 28% de nossas exportações. Para comparação, a média do setor de champanhe gira em torno de 18% do valor exportado.
Dito isso, não se deve negligenciar a importância do mercado francês. Na Jean-Noël Haton, o mercado nacional ainda representa cerca de 70% de nossas vendas totais, sendo nosso principal alicerce. Essa divisão particular, com uma exportação crescente, porém ainda minoritária, nos dá uma base sólida e nos permite desenvolver progressivamente nossa presença internacional.
Como a indústria foi afetada pelas tarifas alfandegárias americanas sobre vinhos e destilados europeus?
Desde a reeleição de Donald Trump, a situação ficou muito instável para os exportadores de champagne para os Estados Unidos. Todos os pedidos foram suspensos, até mesmo os que já estavam em andamento. Nada mais era enviado, o que naturalmente causou uma paralisação brusca nas nossas exportações.
Atualmente, foi instaurada uma trégua alfandegária: as tarifas foram temporariamente congeladas em 10% por um período de 90 dias. Isso gerou duas reações muito distintas entre nossos importadores americanos. Alguns, como nosso cliente ABC na Flórida — uma grande rede de lojas de vinhos —, decidiram acelerar massivamente seus pedidos para aproveitar esse período mais brando, temendo um endurecimento futuro, embora eu não acredite que as tarifas atinjam os 200% anunciados em novembro de 2024. Outros, por sua vez, adotaram outra estratégia: esperam por uma redução ou eliminação total das tarifas ao final das negociações.
Mas há outro fator, muitas vezes subestimado, que pesa fortemente sobre nossos negócios: a taxa de câmbio. Desde a posse, o euro se enfraqueceu frente ao dólar, o que encareceu em quase 10% o custo de compra para os importadores americanos. Essa variação cambial tem um impacto grande até maior que as próprias tarifas alfandegárias.
Essa guerra alfandegária vai impactar a forma como vocês comercializam com os EUA?
Neste momento, não prevemos uma queda em nossos volumes para os EUA. Muito pelo contrário, achamos que poderemos manter ou até aumentar nossas remessas, pois ainda não estamos plenamente distribuídos em todo o território americano. Ainda há margem de crescimento, especialmente em diversos grandes estados onde nossa presença é parcial.
Essa resiliência se deve em grande parte ao nosso modelo. Mesmo que, durante anos, as grandes maisons produtoras de champagne tenham sido um modelo de negócios bem-sucedido que impulsionou o setor no exterior, esse desenvolvimento atinge seus limites no contexto atual. Onde elas mais sofreram foi na estratégia de crescimento baseada no aumento contínuo de preços — elas forçaram demais a elasticidade-preço. Essa lógica, baseada na ideia de que a demanda permaneceria insensível à alta de preços, está se esgotando, indo além de uma crise passageira. A maioria dos mercados já não acompanha “de olhos fechados”.
Na Jean-Noël Haton, sempre preferimos manter uma política de preços razoáveis, sem comprometer a qualidade. É essa combinação de autenticidade, regularidade e preço justo que nos permite hoje manter nossa posição, mesmo em um contexto internacional incerto.
O mercado asiático, ou outros mercados, tendem a ganhar mais relevância?
Nenhum mercado, hoje, pode substituir os EUA em termos de volume ou consumo. Mesmo o Japão, Coreia do Sul e Hong Kong ainda estão longe disso. No entanto, existem zonas em expansão que não devem ser negligenciadas, mercados que ainda não são considerados “maduros” — ou seja, onde as cinco maiores casas produtoras de champagne francês ainda não dominam.
A Coreia do Sul, alguns países da África, o Brasil, Cingapura e Austrália fazem parte dos mercados que identificamos como promissores para nosso estilo. Em três anos, acrescentamos 36 novos importadores. Isso não significa que compensarão uma eventual retirada americana no curto prazo, mas representam vetores importantes de crescimento futuro.
Estamos em um período muito particular: pela primeira vez, não há mais um motor evidente nas exportações. As grandes locomotivas históricas estão paradas ou em retração. Nesse contexto, cada novo mercado conquistado é uma vitória.
Diante do atual contexto econômico, como casas de champagne independentes como a sua estão se adaptando?
Nossa força é nossa estrutura enxuta. A Jean-Noël Haton funciona com uma equipe de apenas 40 pessoas (majoritariamente nas vinhas e na produção). Não temos departamento de marketing nem setor de comunicação. Toda nossa estratégia se baseia no boca a boca, nas degustações com profissionais e na qualidade constante dos nossos champagnes. É um modelo que exige uma operação de longo prazo, mas que já demonstrou sua eficácia na fidelização dos clientes.
Essa simplicidade organizacional nos permite oferecer preços muito competitivos: nossa cuvée inicial ainda é vendida por menos de 30 euros (R$ 188) em lojas especializadas (La Grande Epicerie, Cavavin, Repaire de Bacchus, Majestic Wines), oferecendo uma experiência de degustação comparável à de uma grande maison. É esse posicionamento que atrai enólogos, restauradores, hoteleiros — tanto na França quanto no exterior.
Nossa estratégia para os próximos anos é simples: continuar desenvolvendo novos mercados, preservando nossa independência e identidade. O consumidor de hoje, como se vê, está em busca de algo diferente: sentido, transparência, autenticidade. Isso se alinha perfeitamente com o que somos.
Vocês planejam cortes de pessoal?
De forma alguma. Não temos nem o porte nem o modelo que nos permitiria isso. Nossa equipe já é extremamente enxuta: 40 colaboradores durante o ano e mais 80 durante a colheita. Todos acumulam funções, e o equilíbrio já é bastante ajustado. Demitir nos colocaria em risco.
Enquanto grandes casas são obrigadas a implementar planos de demissão, muitas vezes por um modelo que se tornou pesado ou excessivamente dependente de um marketing promocional, nós nos beneficiamos da nossa agilidade. Essa flexibilidade é hoje uma grande vantagem em um ambiente econômico instável.
Vocês esperam medidas de apoio do governo? E da Europa?
Sinceramente, não esperamos apoio financeiro específico. O que esperamos, por outro lado, é a simplificação das regras. Um dos grandes paradoxos é que a exportação intraeuropeia, às vezes, se torna mais complexa do que a exportação para países terceiros. As regulamentações, os rótulos, os impostos e as normas variam de país para país, o que torna nosso trabalho consideravelmente mais pesado.
Na Itália, por exemplo, é preciso refazer contra-rótulos específicos só para esse mercado. São pequenos volumes, mas com uma carga de trabalho enorme e menos rentabilidade.
Quanto aos auxílios, eles já existem, como os oferecidos pelo FranceAgriMer, entidade pública administrativa sob a tutela do Ministério da Agricultura francês, por exemplo, mas seu acesso é extremamente complicado. Os processos são longos, as regras mudam com frequência, e às vezes é necessário recorrer a uma agência especializada apenas para preencher o dossiê e torcer para que ele seja aceito. Esse sistema, atualmente, beneficia principalmente as grandes estruturas.
Na sua opinião, que soluções podem fortalecer a resiliência da cadeia do champagne na França?
É preciso refletir profundamente sobre a valorização do quilo da uva. Hoje, o valor pode chegar a 7,50 até mais de 8 euros (R$ 47 a R$ 50) o quilo em alguns crus, o que se torna cada vez menos sustentável e se difícil de sustentar para o consumidor final. Com pelo menos uma interrupção da inflação anual histórica, poderíamos manter uma produção viável e uma remuneração decente para os viticultores.
Isso aumentaria as vendas, em volume e valor, no exterior e a exportação da indústria de champagne, que ainda tem muito potencial na maioria dos países, e fortaleceria os resultados da indústria como um todo. Essa lógica de aumento contínuo foi impulsionada pelas grandes casas, que conseguiram arcar com isso graças ao seu posicionamento de alto padrão. Mas esse modelo está perdendo força porque algumas delas agora estão compensando a queda nas vendas com grandes promoções internacionais.
Em termos de pontos de venda, a prioridade é continuar explorando mercados em expansão. Ainda temos uma margem enorme: enquanto os volumes de exportação representam 56% para toda a região de Champagne, estamos apenas em 30%. Países como Coreia, Cingapura, Austrália e certos mercados europeus como Bélgica, Itália e Reino Unido — apesar da constante competição promocional — são caminhos que pretendemos explorar mais a fundo. Mas requer resistência, rigor e uma visão de longo prazo: leva tempo para construir essas distribuições.
Na verdade, já havíamos identificado todos esses problemas há vários anos. O que o contexto atual faz — com as tarifas impostas pelo governo Trump e a incerteza resultante — é simplesmente destacar fraquezas e tensões estruturais que o setor já estava enfrentando.
Isso nos obriga a reagir mais rapidamente, a nos adaptar. Mas na Jean-Noël Haton, por mais de 50 anos, não mudamos de rumo. Estamos seguindo a estratégia de Sébastien Haton, que começou bem antes da crise na França e que estamos tentando reproduzir na exportação.
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