Por anos, beneficiários do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) denunciaram descontos mensais realizados sem autorização legítima, referentes a contribuições associativas de entidades das quais jamais participaram.
Em paralelo, o Judiciário brasileiro tratou essas práticas como meros aborrecimentos do cotidiano (“mero dissabor”), recusando-se a reconhecer o dano moral indenizável, demonstrando o desprezo institucionalizado à dignidade dos beneficiários da Previdência Social e minimizando a repercussão que estes descontos representavam para os aposentados.
Prevaleceu o entendimento de que não haveria dano moral quando os valores descontados fossem pequenos ou quando o segurado não conseguisse provar prejuízos concretos, como endividamento ou comprometimento de subsistência. Em Santa Catarina, o ponto de consolidação desse raciocínio se deu com o IRDR n. 5011469-46.2022.8.24.0000, julgado pelo TJ/SC, em que se afirmou que descontos indevidos decorrentes de empréstimos consignados, mesmo reconhecidamente ilegais, não ensejariam danos morais de forma automática, sem comprovação de um dano efetivo.
Essa interpretação, que impõe um ônus probatório desproporcional ao aposentado funcionou na prática como um salvo-conduto não só para as instituições financeiras inserirem empréstimos fraudulentos, mas também às associações, que operavam sem medo de condenações significativas. O máximo risco era a devolução dos valores. O dano moral era sistematicamente negado.
Este entendimento corroborou com a prática ilícita, dando azo a um esquema bilionário de desvio de valores dos aposentados e pensionistas.
Mudança de posicionamento: a repercussão do escândalo
Com a deflagração da Operação “Sem Desconto” pela Polícia Federal e CGU, a opinião pública tomou conhecimento da verdadeira extensão do esquema: milhões de segurados foram lesados em valores que somam bilhões de reais. As investigações revelaram fraudes organizadas, uso indevido de dados pessoais, gravações simuladas e falta de qualquer controle eficaz por parte do INSS.
A exposição da fraude em rede nacional revelou a gravidade dos fatos, corroborando com novas decisões para condenar as associações ao pagamento de danos morais, além da devolução em dobro dos valores indevidamente cobrados.
Embora alguns tribunais já tivessem proferido decisões reconhecendo o dano moral, com indenizações fixadas entre R$ 2.500,00 e R$ 5.000,00 por segurado, a ampla exposição pública do escândalo fortaleceu e legitimou ainda mais esse entendimento, impulsionando para a consolidação de uma jurisprudência mais protetiva e coerente com a gravidade dos fatos
Neste sentido, cita-se trecho do acórdão proferido pela 4ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Mato Grosso do Sul nos autos n. 0801139-32.2024.8.12.0024:
“O dano moral decorre não apenas do valor descontado, mas da insegurança gerada ao consumidor diante de prática abusiva reiterada, que inclusive motivou operação nacional de investigação (operação Sem Desconto), revelando conduta lesiva e sistemática contra população vulnerável.”
O discurso judicial mudou: deixou-se de lado a narrativa da trivialidade para se reconhecer que subtrair valores de aposentados, de forma reiterada e silenciosa, é uma forma grave de violação da dignidade da pessoa humana.
A justiça que chegou tarde
Foi preciso um escândalo de proporções nacionais para que se reconhecesse o óbvio: que a fraude em descontos associativos não era um mero aborrecimento, mas uma agressão continuada e humilhante aos direitos dos aposentados. Durante anos, prevaleceu a minimização institucional do dano moral. O sistema fechou os olhos às microlesões que, somadas, criaram uma indústria bilionária de exploração de hipervulneráveis.
Como disse Hipócrates, “para males extremos, só são eficazes os remédios intensos”. Neste caso, o remédio é o peso da Justiça. A jurisprudência mais recente, ao reconhecer e reparar os danos morais, reabre as portas da confiança para milhões de cidadãos que por muito tempo foram injustiçados pela tese do mero dissabor.
Que essa virada não seja passageira, mas definitiva, e que o Judiciário siga atuando como guardião efetivo da dignidade da pessoa humana diante dos abusos sistemáticos praticados por grandes instituições.
Priscila Laps De-Bona, advogada especialista em direito do consumidor, membro da Comissão Nacional de Direito Bancário da ABA e da Comissão Estadual de Direito Bancário da OAB/SC
Priscila Laps De-Bona, advogada especialista em direito do consumidor