Mario Costa Junior escreve artigo sobre a urgência do debate sobre a parcela da população em situação de vulnerabilidade nas ruas e o abandono de uma das mais importantes áreas da Capital.

Entre o romantismo da caridade e a realidade do colapso urbano, Florianópolis corre o risco de repetir os erros de outras grandes cidades.
Neste feriado de Páscoa, enquanto eu conduzia mais um tour pelo Centro Histórico da Capital, me deparei, mais uma vez, com uma situação que atormenta todos que circulam pela clássica rota turística que parte do Terminal Cidade de Florianópolis (TECIF), passa pela Catedral e termina no Mercado Público.
Ao desembarcarmos do ônibus, ainda na plataforma, meu grupo começou a notar algo que não constava em nenhum folheto: dezenas de pessoas estiradas nos bancos, cobertas por farrapos dilacerados, algumas visivelmente em sofrimento, outras sob o efeito de substâncias, todas imóveis em uma realidade paralela à Ilha encantada que anunciamos aos visitantes.
A cada passo em direção à Praça XV, o perfume da caridade romântica, aquele que nos leva a distribuir quentinhas, cobertores e moedas nos sinais, com a sensação de quem pratica um gesto sublime, se misturava ao cheiro da vivência nas ruas, do lixo acumulado e fumaça de maconha, criando uma atmosfera opressiva que nenhum guia de turismo gostaria de admitir existir.
E não foi apenas o cenário que me impressionou, mas o que os turistas sentiram e manifestaram com seus olhares desconcertados e comentários contidos. O mesmo que tantos de nós tentamos fingir que não vemos todos os dias: o abandono progressivo de uma das áreas mais importantes da cidade.
Florianópolis ainda carrega o título de Ilha da Magia e vende ao mundo a imagem de um destino encantador, com qualidade de vida, natureza exuberante e sensação de segurança ímpar. Mas essa imagem começa a ruir silenciosamente no coração da cidade. E o que está acontecendo no Centro Histórico não pode mais ser ignorado.
É preciso ser justo. Florianópolis tem políticas públicas sérias, projetos de acolhimento em funcionamento, profissionais dedicados atuando nas ruas. A estrutura existe e muitas vezes dá resultado. O problema está em uma parcela dessa população em vulnerabilidade que, por diversos motivos, simplesmente não aceita ajuda. Em alguns casos por vício, em outros por doença mental, em outros ainda por uma escolha individual de permanência nas ruas.
A isso se soma uma caridade desordenada. Diariamente, vemos pessoas bem-intencionadas entregando comida, dinheiro e mantimentos diretamente nas calçadas e cruzamentos. A intenção é nobre, mas o efeito é perverso. Esse tipo de assistência imediatista não resolve. Pelo contrário, perpetua a dependência e consolida a vida nas ruas como algo tolerável e até recompensado.
É uma espécie de romantização da miséria. Ajudar não é apenas estender a mão. É oferecer caminhos reais de transformação. E ajudar de verdade exige também um ato de coragem: dizer não quando necessário, impor limites, exigir contrapartidas. Ensinar a pescar, como diz o ditado, e reconhecer que nem todos estão dispostos a isso.
Essa é uma conversa difícil, e por isso mesmo tão urgente. Cidades como São Paulo, com sua Cracolândia em mutação constante, ou o centro do Rio de Janeiro, hoje tomado por barracas e degradação urbana, já escancaram os efeitos do descuido prolongado. Nos Estados Unidos, metrópoles como Los Angeles e San Diego vivem uma crise humanitária a céu aberto, com bairros inteiros ocupados por acampamentos e consumo de drogas em plena luz do dia. Até mesmo cidades consideradas modelos de civilidade e desenvolvimento, como Paris, Berlim e Sydney, figuram hoje no topo dos rankings globais de grandes centros urbanos afetados por esse fenômeno, uma combinação de vulnerabilidade social crônica, dependência química, doença mental e políticas públicas que já não dão conta da complexidade do problema.
No Brasil, os números mostram que estamos no mesmo rumo. Atualmente, há 335.151 pessoas vivendo nas ruas, em estado de vulnerabilidade social. Em dezembro de 2024, esse número era de 327.925. Houve, portanto, um aumento de 2,2% apenas no primeiro trimestre deste ano, segundo o informe técnico de abril do Observatório Brasileiro de Políticas Públicas com a População em Situação de Rua, da Universidade Federal de Minas Gerais.
Em Florianópolis, a realidade local também impressiona. A cada mil habitantes, sete estão em situação de rua. Essa proporção, quando concentrada no Centro Histórico, deixa de ser um dado estatístico e se torna uma presença física, cotidiana, inevitável.
O Centro Histórico de Florianópolis não pode seguir por esse caminho. Ele é mais do que um ponto turístico. É o palco da nossa memória coletiva, do nosso patrimônio. Deixar que ele perca a sua vitalidade lentamente diante dos nossos olhos é uma forma de desistência.
Precisamos repensar o papel da sociedade diante dessa crise. Precisamos de políticas públicas cada vez mais eficazes, sim, mas também de uma postura firme. É preciso responsabilidade de quem oferece ajuda, e também de quem a recebe. A empatia precisa ter apoio em ações resolutivas.
Ainda é possível evitar que Florianópolis mergulhe num colapso social urbano como tantas outras grandes cidades. Mas isso exige menos romantismo e mais lucidez. O Centro Histórico está gritando por socorro. A cidade precisa acordar, antes que o dano seja irreversível.
Mario Costa Junior é guia de turismo e presidente do Destino Floripa & Região.