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Um suéter verde e uma saia xadrez. Um terno preto bem cortado. Um robe de veludo azul. Uma jaqueta de pele de cobra. Esses são alguns dos looks emblemáticos que transformaram os misteriosos personagens de David Lynch em ícones da cultura contemporânea.
O cineasta, falecido em janeiro, aos 78 anos, ficou conhecido por seu estilo bastante original (e peculiar), intitulado de “universo lynchiano”. Há os que veneram, os que dizem não entender e os que, por isso, comentam não gostar. É interessante olhar em retrospecto e entender o tamanho da relevância de sua obra.
Tido como o último “diretor-autor”, definição do teórico André Bazin calcada na crítica após a publicação do texto de François Truffaut em 1954, Lynch era um mestre em construir contextos específicos. Suas histórias sempre começavam com um pé na realidade (o sumiço de uma jovem na série policial, uma mulher que sofre um acidente e perde a memória, uma atriz que recebe a oportunidade de estrelar um filme internacional), até que, de repente, o familiar se fundia ao estranho e o cotidiano passava a revelar brechas de abismos insondáveis.
Seus filmes, muitas vezes, não cabiam em gêneros padronizados. O terror no suspense, a comédia no drama, o body horror no romance, a perseguição no mistério, e vice-versa. O figurino, então, entrava no meio desse quebra-cabeça disforme e não linear como ferramenta de tradução dos estados psíquicos de seus personagens e das dualidades que atravessam seus roteiros.
Já no primeiro longa-metragem, Eraserhead (1977), isso era evidente. Na história de uma família surpreendida por um filho desumano, ele apresenta uma seleção de peças propositalmente desgastadas, em tamanhos que não necessariamente correspondem aos dos personagens — principalmente do protagonista, Henry — como uma metáfora do desconforto mental que ele vive.

Cena do filme Coração Selvagem dirigido por David Lynch e com figurinos inesquecíveis
Na sequência, em O Homem Elefante (1980), Lynch começa uma das mais importantes colaborações de sua carreira, com a figurinista Patricia Norris. Para vestir John Merrick – britânico com doença congênita, inspiração para o filme –, ela escolheu roupas que o humanizassem, ao passo que eram estritamente corretas de acordo com as vestimentas do final do século 19.
Ao lado de Patricia, Lynch ainda criou personagens icônicos para Veludo Azul (1986), Twin Peaks (1990) e A Estrada Perdida (1997). Como esquecer Isabella Rossellini como Dorothy Vallens? Aliás, exemplo perfeito de como o cineasta adorava jogar com os estereótipos da indústria de Hollywood para pregar peças na audiência. Signos de femme fatale, como os vestidos pretos deslumbrantes, escondiam os sentimentos e as tragédias internas dessa mulher, que busca proteção todas as noites no robe de veludo azul.
Algo similar acontece com Audrey Horne, na cultuada série de TV Twin Peaks: uma colegial problemática que guarda os brogues no armário da escola para usar sapatos vermelhos longe do controle de seu pai, magnata da cidade. Pode parecer apenas uma maneira de representar a teimosia da adolescência e a busca por uma identidade própria, mas logo percebemos a ligação com a decadência psíquica da jovem, que deixou sua marca na combinação de saias xadrez com suéteres comfy.

Cena do filme Veludo Azul
Já Dale Cooper (ou Agent Cooper), eternizado pelo sempre magnânimo Kyle MacLachlan, também tem condensado em seu guarda-roupa algo muito mais profundo do que um impecável acervo de ternos, combinado com o seu cabelo sem um fio fora do lugar. À medida que o mistério sobre o sumiço de Laura Palmer começa a enveredar para soluções extracorpóreas e materiais, o senso de controle dá espaço para uma dissolução do si mesmo, como se o interno e o externo não se correspondessem mais.
Importante ainda mencionar a figurinista Amy Stofsky, outra grande parceira das criações de David Lynch. É ela quem assina os inesquecíveis looks do casal mais fashionista da filmografia do diretor, Sailor (Nicolas Cage) e Lula (Laura Dern), em Coração Selvagem (1990). Desde o recortado e justo vestido pink até a tal jaqueta de pele de cobra, passando pela combinação all black de ambos, todas as peças usadas por eles reforçam a estranheza da personalidade daquele intenso relacionamento, em um road movie tão esquisito quanto – um elogio.
Na época do lançamento, Willem Dafoe afirmou que o figurino foi a faísca para ele compreender como incorporar o vilão Bobby Peru. Ao lado de Durinda Wood, Stofsky criou os contrastes necessários para a dualidade presente em Cidade dos Sonhos (2001). De um lado, a otimista Betty (Naomi Watts), com seu figurino Y2K em cores claras e texturas aconchegantes; de outro, a enigmática Rita (Laura Harring), moldada por peças que evocam os clássicos noir.
Na história, temos ainda os respectivos alter-egos, que evidenciam, por meio das vestimentas, o contraste psicológico e de caráter entre quem se é e quem se gostaria de ser – um aceno distorcido para a ilusão da indústria do cinema.

Cena da série Twin Peaks
Não à toa, os figurinos dos filmes de David Lynch tiveram grande influência fora das telas. Coração Selvagem inspirou as coleções de verão de 2017 e 2023 da Altuzarra; Veludo Azul virou estampa em suéteres da Jil Sander com Raf Simons – que também levou todas as personagens de Laura Dern para peças da sua coleção ready-to-wear 2019 –, desdobrou-se nas maquiagens do desfile de inverno 2014 da Kenzo e foi citado nos looks de abertura e fechamento (e na trilha sonora) do desfile de verão 2016 da Comme des Garçons.
Já Twin Peaks é forte inspiração para Demna Gvasalia na Balenciaga e compôs peças de uma coleção masculina da Undercover, de Jun Takahashi, em 2024. Sem contar os inúmeros fãs de David Lynch que o homenageiam constantemente em festas como o Halloween ou com trends nas redes sociais, replicando os looks de seus personagens. O próprio diretor, com seu estilo pessoal inconfundível, já colaborou com a Gucci e com a Calvin Klein em campanhas de moda e perfumaria que carregam a sua essência criativa.
Ser capaz de vislumbrar uma estética própria a ponto de ter seu próprio adjetivo é algo para poucos. Sorte a nossa de poder viver em um mundo pós-David Lynch para seguir vendo e revendo todas as partes desse labirinto visual sem uma única resposta. O que não significa que a saudade deixará de existir.
Matéria publicada na ForbesLife Fashion 8, disponível nos aplicativos na App Store e na Play Store e também no site da Forbes.
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