A Odete Roitman foi ressuscitada. Ou, melhor, ela nunca morreu. Como personagem, pode ser alvejada com muitos tiros, assassinada de diferentes formas, e a trama esconder quem cometeu o crime até o episódio final. Porém, na vida real, as Roitmans, os Caco Antibes estão por aí, perenemente, ora vestindo ternos finos, ora camisetas amarelinhas made in Hering ou, by Havan. Eu juro, tento desviar destes temas. Minha esposa até implorou, tantos amigos aconselharam: “Para, Tarciso. Chega de arrumar encrenca!” É que eu não consigo evitar. A desgraça cruza na minha frente. Lá vamos nós outra vez!
E como não falar disso? “Branca, bonita, rica e vocês vaiam”, vomitou a mulher do alto da tribuna da Câmara de Vereadores de São Paulo, com aquela ignorância característica de quem é doente da falta de educação, escola, livros ou vontade para curar o racismo e preconceito. É claro que o assunto não é novela. Seria melhor se a representação, neste caso, ganhasse contornos de arte. A vereadora do NOVO agiu como alguém incapaz de compreender que essas três características — branca, bonita, rica — não são conquistas, mas acidentes de nascimento e, em nenhuma hipótese, definem a capacidade ou impõem qualquer tipo de autoridade sobre os outros.
Não importa muito em qual endereço você está agora, lendo este texto. Provavelmente, em alguma situação, em um momento qualquer, já ouviu alguém repetir a mesma frase. Talvez não publicamente, mas em algum churrasco de domingo ou festa de aniversário. Talvez sem a parte do “vocês vaiam”, mas certamente com a mesma convicção.
É engraçado que, ao nos aproximarmos destas datas que marcam a reflexão, como é o 13 de maio, brotam casos públicos que reforçam e conduzem a discussão. Maio chegou com seu céu de outono e suas memórias incômodas. Estamos em 2025, no mês que, entre outras coisas, nos lembra que há 137 anos uma princesa assinou um papel e supostamente resolveu séculos de escravidão com uma canetada mágica. Essa data que comemoramos como se tivesse sido o fim da história, e não apenas o início de um novo capítulo igualmente problemático. A abolição da escravatura não foi um ponto final, nem mesmo uma vírgula na longa narrativa da desigualdade brasileira. Celebraremos uma lei que libertou pessoas sem lhes dar terra, educação ou reparação. Uma lei que disse “agora vocês são livres” sem declarar “e agora nós somos iguais”.
Como canta Jorge Aragão: “não dá pra fugir dessa coisa de pele”. E não dá mesmo! Dizem por aí que “o Brasil não tem memória, mas o corpo tem, e cor também”. As favelas, os mortos pela polícia, os que estão nas esquinas, sem lar e também os quase 700 mil presos… pretos, pretas… todos marcados. Corpos pretos, cansados, que andam com as cicatrizes que, em alguns casos, nem viveram — porque herdaram – e ainda doem. Parentes dos que sobreviveram e também sofreram calados.
Há quem diga que o Brasil não discute raça o suficiente. Eu diria que o Brasil não discute classe o suficiente. Ou melhor: como raça e classe se entrelaçam num balé macabro que define quem tem o privilégio de se declarar “branca, bonita e rica” e quem carrega marcas permanentes de subordinação na própria pele.
Veja que, há poucos dias, trabalhadores foram resgatados em condição análoga à escravidão em uma fazenda no interior do país. Tatuados à força com as iniciais do casal de fazendeiros, marcados como gado. Em pleno 2025. Como se 1888 nunca tivesse acontecido.
Sabe o que é mais irônico? Nossa cidade, tão orgulhosa de sua herança europeia, tão zelosa em preservar tradições germânicas, às vezes parece esquecer que o Brasil é maior que uma colônia alemã bem-sucedida. Enquanto nos preocupamos se as flores da praça estão bem cuidadas para os turistas fotografarem, há pessoas sendo tratadas como objetos descartáveis em fazendas, fábricas e canteiros de obras, na limpeza pública – e de centros comerciais – aqui e Brasil afora.
Não, não estou dizendo que somos todos escravocratas modernos por viver em Blumenau, ou por você ter mais consoantes que vogais em seu sobrenome. Definitivamente, não é isso! Seria simplista demais. O que estou dizendo é que talvez precisemos sair por alguns segundos da nossa bolha ocasionalmente. Compreender que, por mais duros que sejam os nossos dias, existem condições e situações que fazem de uns privilegiados e outros não.
A cor da pele determina quem é parado pela polícia. Quem é seguido por seguranças em shopping centers. Quem é presumido culpado. Quem tem que trabalhar o dobro para provar seu valor. A pele suada do trabalhador rural que, sob o sol escaldante, produz a riqueza que nunca verá. A pele marcada dos escravizados contemporâneos, cuja existência preferimos ignorar enquanto bebemos nosso café, vestimos nossas roupas, comemos nossos alimentos — todos possivelmente manchados pelo suor de quem não conhece liberdade real.
A vereadora paulistana que disparou essa pérola provavelmente acha, como muitos compartilham, que racismo é “mimimi” de quem não se esforça o suficiente. Deve pensar também que este papo de luta de classes é coisa de esquerda, e não de gente que sonha com um futuro coletivo minimamente melhor. Aposto que para ela o pobre é pobre porque quer, que basta trabalhar que fica rico, e que Odete Roitman era a heroína incompreendida de “Vale Tudo”.
No fundo, o que conecta a vereadora privilegiada e o fazendeiro escravocrata é a mesma lógica: a crença de que algumas pessoas valem mais que outras. Além disso, de que alguns corpos podem ser explorados, silenciados e marcados. Abafando os gritos de tantos oprimidos e elevando algumas vozes, pois estas merecem ser ouvidas e outras, não.
Dia 13 de maio chegará mais uma vez, como sempre: com racismo vivo, a opressão funcionando e um passado escravocrata triunfando. Políticos depositarão flores em algum monumento à Princesa Isabel. E, enquanto isso, em algum lugar deste imenso Brasil, alguém tentará esconder uma marca na pele que não escolheu carregar.
Se Odete Roitman saísse da telinha para a urna eletrônica, provavelmente seria eleita com votação recorde. As imitações, as versões cover da personagem, já estão aí, ocupando os parlamentos brasileiros.
Como eu disse, queria evitar certos temas. Mas eles são inevitáveis. Porque não dá para fugir dessa coisa de pele. Não enquanto continuarmos acreditando que algumas peles conferem o direito de explorar, de silenciar, de vaiar — e outras, o dever de se submeter, de se calar, de servir. A verdadeira abolição ainda está por vir.
Podem vaiar… Preto, pobre e feio vocês vaiam!
Tarciso Souza, jornalista e empresário