Clube da Leitura: a vitória de uma justa causa

Convenhamos: não é fácil carregar a causa da leitura no Brasil, diante do que revelou a pesquisa ‘Retratos da Leitura’, em novembro último. O trabalho constatou, desde 2019, uma redução de 6,7 milhões de leitores no país – o equivalente a mais de 80% da população de Santa Catarina. De iniciativa do Instituto Pró-Livro, as estatísticas exibem o agravamento de um quadro há muito tempo ruim.

Leitor é aquele que leu, inteiro ou em partes, pelo menos um livro de qualquer gênero, impresso ou digital, nos últimos 3 meses.

Arte inédita de Luciano Martins sobre os clubes de leitura.

Contudo, em meio a essa aridez de leitores, muitos projetos públicos, privados ou do terceiro setor (e, em vários dos casos, com as três áreas atuando em sintonia) se destacam por não desistirem de levar às novas gerações a esperança da leitura como meio de crescimento cultural e de formação da cidadania.

Criado em 2009, na gestão de Rodolfo Pinto da Luz e Sidneya Gaspar de Oliveira à frente da Secretaria Municipal de Educação de Florianópolis (SME), o ‘Clube da Leitura – a gente catarinense em foco’ é uma dessas iniciativas que merecem louvor e reconhecimento. A proposta é “formar leitores e mediadores de leitura, promovendo o acesso à produção literária infantil e juvenil de Santa Catarina”, além de “propiciar a proximidade entre obra, criador e público leitor”.

Na prática, professores de português e bibliotecários da rede municipal de ensino da capital selecionam obras infantojuvenis de autores catarinenses para trabalhar nas turmas de ensino fundamental. São dinâmicas multidisciplinares, envolvendo também os professores de história, geografia e artes, por exemplo. Um passeio até o cenário do livro pode ser parte da experiência. E culmina com um agradável bate-papo dos estudantes com o (a) autor(a) do livro escolhido.

Heliete Schütz Millack.

Heliete Schütz Millack, graduada em Letras e Pedagogia (UFSC e Udesc), hoje aposentada, liderou a criação do Clube e revê esse passado com imensa satisfação. “O Clube teve muita aderência dos professores, desde o início – e não só dos que lecionavam português. Incorporamos inúmeros autores infantojuvenis de Santa Catarina. Foi um trabalho que envolveu paixão, foi gratificante, prazeroso e realizador”, resume.

Ela enfatiza as especiais contribuições advindas de Eloi Elisabet Bocheco, Yedda Goulart, Marta Martins e Eliane Debus, consagradas autoras catarinenses. “Quando começamos sequer dispúnhamos de acervo”, lembra. “As primeiras obras foram conseguidas com o residual de um concurso promovido pela Secretaria Estadual de Educação. Mais tarde ampliamos com projetos incentivados, aquisições pela SME e doações de autores”.

Diálogo interdisciplinar

Heliete se licenciou para o seu mestrado em educação, e mais tarde se afastou das atividades profissionais por problemas recorrentes com sua saúde, sendo sucedida por Waleska Regina Coelho Becker De Franceschi. “O Clube da Leitura era dedicado à formação dos professores de português e entendemos a necessidade de tornar a leitura e o manejo dos livros em sala de aula como algo interdisciplinar. Todas as disciplinas podem dialogar com a literatura”, explica Waleska, professora de artes, com mestrado em pedagogia do teatro, doutorado em educação e desde 2013 à frente do Clube.

Waleska Regina Coelho Becker De Franceschi.

Além da continuidade da iniciativa (algo incomum nas gestões públicas), o Clube da Leitura tem o mérito de romper com práticas superadas na formação dos leitores. “A fórmula antiga remete às fichas de leitura, mas optamos por trabalhar com o tripé ‘leitura + contexto + produção’, sem a necessidade de que esse processo seja linear e gerando outras formas de interpretação e interação, de acordo com as características da turma. Em nossa opinião, o pulo do gato é a criação do significado, a origem da narrativa, a conjunção entre o autor e o que os estudantes assimilam”, defende Waleska.

A professora Tania Mattos – graduada em Letras (UFSC) e hoje aposentada – viveu dezenas de experiências em sala de aula pelas escolas de Florianópolis, acompanhando os autores nos encontros com alunos, o ápice de todo o processo de interação entre os leitores e a obra. “A empolgação das crianças era emocionante, muito linda – e isso contagiava os escritores. Foi um trabalho maravilhoso”. Tania também se dedicava à formação dos bibliotecários da rede pública municipal, cujo papel de mediadores é essencial nessa corrente em favor da leitura. Atualmente, o Clube tem Daiane Rocha e Angela Gama no estratégico papel de assessoras pedagógicas.

Os números do Clube da Leitura são expressivos: nestes quase 16 anos, as dinâmicas envolveram 152 autores, 325 títulos e 4.780 exemplares, nas 39 unidades de ensino da capital catarinense. No entanto, a emoção dos depoimentos de autores é mais reveladora.

Clube da Leitura: 152 autores, 325 títulos e 4.780 exemplares trabalhados nas 39 escolas de Florianópolis.

“Em 2012, fui convidada pela professora Heliete para participar do Clube da Leitura – e foi o maior presente que ela poderia ter sonhado em me dar”. O depoimento da escritora manezinha Patrícia Carpes resume o sentimento de muitos autores nos encontros com os alunos da rede pública municipal de Florianópolis.

“A cada visita fico mais apaixonada pelo Clube da Leitura”.

Patrícia Carpes, autora.

Patrícia Carpes em um dos muitos encontros promovidos no Clube da Leitura. Foto: Divulgação.

No ano anterior, ela lançara ‘Naufragados’, uma aventura na praia do extremo sul da Ilha de Santa Catarina – e a obra caiu no gosto das crianças. “Foi uma grande surpresa para mim, o livro teve forte aceitação também pelos professores, coordenadores e bibliotecários. Fui recebida nas salas de aula com cartazes com minhas fotos, fotos da capa do livro e ilustrações, além de frases de carinho, cartinhas e é claro, inúmeras perguntas sobre a obra e pessoais”, relembra Patrícia. As dinâmicas com ‘Naufragados’ incluíram diversas excursões de turmas de alunos à praia, através de uma trilha pela mata atlântica. No ano passado, a autora lançou uma sequência da obra – ‘Naufragados, o regresso’ (Carijós). “A cada visita, fico mais apaixonada pelo Clube da Leitura”.

Seguramente, um sentimento que pode ser subscrito pelos demais autores que participam ou participaram da iniciativa.

Nota do redator: Por se tratar de um projeto de quase 16 anos de atividades, é impossível resgatar sua memória sem excluir – involuntariamente – algum personagem de importância nessa jornada. Em especial, quando se está premido pelo número de caracteres. Portanto, estendo o tributo desta exitosa iniciativa ao conjunto de profissionais e voluntários que dela participaram, em qualquer proporção e peço desculpas por eventuais deslizes nesse resgate.

O que lê Chico Socorro

Francisco Socorro – ou Chico Socorro, como é mais conhecido – 80 anos, é um dos mais respeitados nomes da publicidade, do marketing e da cultura de Santa Catarina. Estudou na USP, onde foi aluno de Fernando Henrique Cardoso e graduou-se em Sociologia e História da América Latina pela Universidade de Leipzig, Alemanha. Começou a carreira de publicitário como office-boy na lendária J Walter Thompson de São Paulo, e atuou em inúmeras das maiores agências do país, além de gerenciar o marketing da Cia Hering por cinco anos.

“Recentemente li ‘A Vila dos Tecidos’ (Arqueiro) de Anne Jacobs, nascida na Alemanha, e que antes de ser escritora trabalhou numa livraria. A obra é um romance histórico e social, que aborda a vida da rica família Melzer, de Augsburg, Alemanha, na primeira década do século passado – e o relacionamento com seus empregados domésticos. O filho Paul se apaixona por Marie, a ajudante de cozinha, com quem acaba casando-se. Os desdobramentos emocionais, familiares e sociais se revelam em uma intrincada trama para prender o leitor.”

Leituras para a cadeira de praia

  • Marina Colasanti tem uma das mais delicadas escritas que conheço. O conto é o seu território, tão íntimo quanto nobre, e recomendo “O Leopardo é um animal delicado” (Rocco 1998), uma série de narrativas distintas – mas de alguma maneira conectadas – e sempre comovedoras, com uma diversidade vocabular que vai às profundezas do sentido daquilo que descreve. “Menina de vermelho a caminho da lua”, “Vulcão de seda” e o conto que empresta o nome ao livro me pareceram os mais belos e surpreendentes.
  • O capixaba Rubem Braga (1913-1990), de vasta obra, da qual sou encantado por “Ai de ti, Copacabana’, é quase o sinônimo completo de crônicas. Sirvo-me de ‘O verão e as mulheres’ (Record) para trazer um aspecto curioso. Nesse livro, que nas primeiras edições tinha o título de ‘A cidade e a roça’, Braga relata uma passagem por Blumenau, em 1953, com uma narrativa quase idílica, incluindo uma noite de pingue-pongue na companhia de Paulo Mendes Campos, enfrentando rapazes e moços locais (…) “todos louros e de sobrenomes alemães” …
  • Canário de Assobio, de Silveira de Souza (1933-2021), tem o luxuoso adendo das ilustrações da Hassis e a apresentação de Flávio José Cardozo, reunindo o estilo inquieto, crítico, maduro e muitas vezes irônico do autor, prosador e poeta florianopolitano, numa edição de 1985 da lendária editora Lunardelli. Sobre a obra de Silveira de Souza, escreveu Salim Miguel, certa feita: “Não é só texto. É texto de alguém que tem o que dizer e sabe como fazê-lo”.

Nota do redator: Poucos dias antes de enviar essa coluna ao editor, perdemos Marina Colasanti, aos 87 anos. Tive a breve, mas privilegiada oportunidade de conviver com ela durante o Fórum Oeste do Livro e da Leitura, em Chapecó (SC), em 2015, uma iniciativa do Instituto Bom de Ler, do abnegado defensor da cultura José Paulo Teixeira. Ao trocarmos impressões sobre as obras que mais nos impactaram, Marina admitiu o pesar por ainda não ter lido uma de minhas preferências – “Mestre e Margarida”, do ucraniano Mikhail Bulgákov. Conosco, dividindo caipirinhas e chopes, a genial Zoara Failla, que gerencia a pesquisa Retratos da Leitura, do Instituto Pro-Livro.

Lançamento

A jornalista catarinense Vanessa Clasen seguiu a trilha quase natural do ofício e enveredou pela ficção. Seu romance de estreia, ‘Nas sombras da lembrança’ (edição da autora), foi precedido contos premiados e selecionados para compor a ‘Antologia do novo conto catarina’ (Panóplia) – além de uma breve e reconhecida passagem pelos versos.

No ano passado, desengavetou uma ideia represada por 13 anos e produziu um suspense psicológico envolvente desde a primeira página, a partir de um personagem sem memória e perseguido pela angústia de recuperar um passado que pode oprimi-lo mais do que a mente amnésica.

A trama, por vezes, derrapa nas conexões, e o texto poderia prescindir da excessiva adjetivação. Todavia, escrever e publicar são atos de coragem. E esse é o maior mérito de Vanessa Clasen, que tem as ferramentas para evoluir muito. “Sofria por baixa autoestima, temia não escrever uma história boa o bastante e das consequentes críticas. Hoje estou muito feliz por ter desengavetado esse livro e ter superado meus medos. Sei que essa é uma história que mereceu ser contada e merece ser lida”.

*Com o apoio de Roberto Pires.

Uma pergunta para Cleo Schmitt

A pesquisa ‘Retratos da Leitura’ (nov. 2024) revela que mesmo entre leitores, a frequência às bibliotecas é muito reduzida: 75% não frequentaram e 60% consideram-nas como um local apenas para estudar e pesquisar. E, uma vez concluídos os estudos, são poucos os que voltam a uma biblioteca. O problema está ligado a questões estruturais e históricas da sociedade brasileira (mas isso não explica tudo) e algumas geracionais.

Perguntamos à bibliotecária Cleonisse Schmitt (UFSC – 2000), diretora da Biblioteca Pública do Estado (BPE) desde 2019:

“O que podemos esperar da Biblioteca Pública do Estado para atrair e diversificar sua frequência em 2025?”

“Vamos focar em atividades que promovam a escrita e a leitura, com a maior acessibilidade possível. Teremos oficinas de escrita criativa, biblioterapia, contação de histórias, mediação de leitura, lançamentos de livros, bate-papos com escritores, ilustradores, editores. E vamos incrementar a divulgação dessas ações, atraindo público maior e mais diversificado. Também é muito importante gerar debates sobre os mais amplos temas relacionados aos livros e à leitura. Por fim, contamos com as parcerias com as secretarias de educação do Estado e do município para receber cada vez mais estudantes para conhecerem a biblioteca, seus serviços, seu acervo e participar das atividades”.

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