Opinião | “…é só tiro, porrada e bomba”: explodindo a democracia em defesa da democracia (!?)

O filósofo e jurista Giorgio Agamben (1942) em várias de suas obras: “Meios sem fim: notas sobre a política”; “Homo Sacer: o poder soberano e vida nua I”; “Estado de exceção”, “O que resta de Auschiwtz: o arquivo e a testemunha” entre outras, publicadas no Brasil a partir dos anos 2000, faz um preciso diagnóstico sobre as contradições inerentes às democracias liberais ao longo do século XX aos dias atuais.  Nas referidas obras, o filósofo demonstra que foi no seio das sociedades democráticas liberais da primeira metade do século passado que se impetraram formas de violência física e simbólica, que ao promoverem a destruição das instituições, do espaço público, abriram as possibilidades para a produção em massa de cadáveres nos campos de batalha da Primeira e Segunda Guerra, bem como as pavorosas experiências totalitárias fascistas e nazistas que consumiram milhões de vidas nas fábricas da morte, nos campos de concentração.

Ainda nesta direção, o pensador demonstra de forma sibilina que o Estado totalitário nazista implantado em 1933 prolongado até 1945 foi um estado de exceção que perdurou 12 (doze) anos, sob vigência da Constituição de Weimar, uma das constituições mais liberais de seu tempo. Constituição mantida formalmente em vigor. Porém, desprovida de força de lei. Suspensa pelo estado de exceção que se tornou regra permitindo a produção e “vida nua”, vidas descartáveis e matáveis de acordo com os interesses e cálculos do poder soberano. Ato contínuo sugere Agamben, passadas quase oito décadas daqueles dramáticos acontecimentos nada ou muito pouco aprendemos, na medida em que não sabemos muito bem do que estamos falando quando afirmamos que vivemos em sociedades democráticas.  Afinal, ao longo da segunda metade do século XX aos dias atuais, a partir de discursos em defesa da democracia, justificaram-se invasões a povos e países e, promoveram-se conflitos mundo afora em sua maioria perpetrada por potências ocidentais. Em nome dos direitos humanos mataram-se milhões de vidas, abandonaram-se outras tantas vidas indesejáveis em função da manutenção de relações assimétricas de poder, de garantias de concentração de capital e de perpetuação de privilégios.  Aqui se trata de ter em mente os refugiados em sua maioria africanos, que perderam suas vidas no mar Mediterrâneo tentando entrar na Europa, os imigrantes ilegais latino-americanos que perderam suas vidas no deserto de Sonora, entre México e EUA, tentando entrar no país situado ao norte do hemisfério americano. E, sobretudo considerar o genocídio promovido por Israel contra os palestinos da “Faixa de Gaza” com a omissão, ou mesmo anuência de líderes das principais potências ocidentais. Cabe ainda  mencionar a flagrante concentração da riqueza socialmente produzida e a socialização da fome, da miséria e pobreza mundo afora. 

Se o diagnóstico de Agamben é válido, urgente e necessário quando analisamos as democracias liberais representativas ocidentais a partir de fins do século XIX à atualidade é preciso considerar que o pensador é europeu e, por mais assertivo e universalizável que seja seu diagnóstico, no caso brasileiro existem especificidades que precisam ser consideradas, conforme seguem ao longo do texto. E esta tarefa nos pertence por urgência e necessidade de avançarmos na compreensão de nossa trajetória em suas contradições, paradoxos e possibilidades.  De tal condição resulta imprescindível questionarmos a experiência da sociedade brasileira com a democracia.  Movimento compreensivo desta natureza requer olharmos para o passado em algumas de suas variáveis como condição de compreendermos nosso presente, ou melhor, de nos questionarmos como chegamos a atualidade de nossa condição societária.

Nossa trajetória se inicia com a invasão dos portugueses no século XVI. Estas terras já eram habitadas por povos nativos. Escravizados, violentados, catequizados no contexto de uma colônia de exploração. Terras griladas distribuídas na forma de latifúndios aos amigos do Rei:  as capitanias hereditárias. Monocultura da cana-de-açúcar, mineração, cafeicultura. Trabalho escravo, agora do negro arrancado da África e comercializado por portugueses, holandeses, franceses, entre outros, que legitimavam o direito de escravizar numa suposta superioridade de “raças”.  Trezentos e vinte anos de escravidão. Milhões de negros consumidos na empreitada de exploração dos limites da terra e de seres humanos desconsiderados em sua condição de humanos. Esgotada a capacidade de manutenção do poder sobre a colônia de exploração negocia-se sua independência efetivada em 1822. Um dos últimos países a abolir a escravidão negra em 1888. Libertos os escravos “sem eira e nem beira”. Que deus os ajude, afinal as oligarquias agrárias têm outros planos. O Império é inviável. As oligarquias agrárias e seus próceres desejam uma república. Chamem os militares, apresenta-se o Marechal Deodoro que executa o golpe e funda a res pública das oligárquicas. Velha e viciada de alto a baixo ficou a República velha. Em 1930 fez-se a revolução. Sete anos depois se afirma por meio de outro golpe o “Estado Novo”. É neste ano que Getúlio Vargas institui o DASP (Departamento Administrativo do Serviço Público). Enfim, chegamos ao século XX. Teremos um Estado na forma de uma racionalidade política, jurídica e econômica. Essa talvez fosse a intenção. É preciso industrializar o país.  É hora de nos tornarmos modernos. Mas é preciso incorporar as velhas oligarquias na modernização do país.

Entre os anos 30 aos anos 60 do século XX estava em jogo a afirmação de um projeto de desenvolvimento nacional que pretendia, ao menos discursivamente, contemplar os mais diversos setores produtivos da sociedade brasileira. Reformas de base foram anunciadas:  reforma agrária, reforma educacional, reforma urbana, reforma tributária. Enfim, os brasileiros teriam um país para chamar de seu. Tudo corria bem, até o momento em que setores da oligarquia e da burguesia nacional decidiram abandonar o projeto de desenvolvimento nacional. Convocam-se os militares. Somente um golpe de Estado pode preservar os interesses de grupos minoritários oligárquicos e burgueses. Desenvolvimento Nacional com justiça social? Isto é coisa de comunista, de socialista, de anarquista. E assim se fez o golpe em 1º de Abril de 1964.  Mas, 1º de abril é dia da mentira. “A população não vai acreditar que foi imputado ao país mais um golpe.” Não tem problema. Redija-se o edital do golpe com data retroativa de 31 de março de 1964. Vinte anos de militares no poder. Perseguição, torturas, mortes. Nada esclarecido. Documentos e registros que não foram queimados, destruídos, foram trancafiados  a sete chaves e, guardados por fuzil e metralhadora. Até o presente momento a “Comissão da verdade” continua  calada, impedida de dizer o que ouviu e o que viu. 

Ao longo dos 135 de República apenas 6 (seis) presidentes eleitos por voto popular conseguiram concluir seus mandatos. Nossa trajetória de colônia de exploração forjou oligarquias rurais e urbanas extremamente hábeis em fazer com que tudo mude para que tudo fique como está. Fomos forjados por um ethos escravocrata agressivo, patrimonialista eficiente na manutenção de interesses de grupos sociais minoritários. Nesta sociedade “salve-se quem puder”, “Manda quem pode, obedece quem tem juízo”. O recado está dado. Não se questione. Como não há espaço público para ser compartilhado, aquilo que é público é objeto de interesse privado. Àqueles indivíduos que não nasceram no berço privilegiado das oligarquias resta tentar se refugiar numa das muitas corporações existentes, que se locupletam com benesses e altos salários pagos pelo erário público, ou ser lançado na massa dos trabalhadores mal pagos, precarizados, informais, com contratos intermitentes, ou submetidos à jornada 6 x 1, senão mesmo desempregados, entre outras variáveis.

Em meados dos anos 80 do século passado os militares deixam o poder (de todo modo continuam em prontidão nos quartéis para cumprir sua vocação golpista sempre que requeridos pelas velhas e novas oligarquias. “Homens de bem e também de bens”), mas não antes de garantir salvo-conduto em relação aos “serviços” prestados às elites escravocratas a qual se encontram vinculados.  As eleições “livres” voltam como conquista da democracia, mesmo que ao longo de nosso percurso civilizatório a experiência democrática não tenha de fato se apresentado. A partir de então muita coisa (ou quase nada) mudou. Estamos nos anos 1990. É o tempo da agenda neoliberal (mesmo que se tenha dificuldade de aceitar o prefixo “neo”, num país em que o ethos escravocrata não demonstrou o mínimo interesse pelo ideário liberal burguês constitutivo da modernidade, o “liberalismo”).  Inicia-se a catilinária da liberdade de mercado, condição única e racionalidade eficiente e eficaz na afirmação do desenvolvimento econômico e, por decorrência social. Para os “neo”-liberais, o Estado tornou-se ineficiente, perdulário, paquidérmico, inibidor da livre iniciativa. Estado tem que ser mínimo resultando no máximo de produtividade, de ganhos individuais e, por decorrência social. A sociedade é um conceito metafísico.  A sociedade não existe, o que existe são indivíduos empreendedores, empresários de si mesmos. Sob a lógica de mercado, indivíduos que conseguirem resolver satisfatoriamente a contradição de serem competidores em constante cooperação alcançarão as benesses da sociedade de plena produção e consumo. Do Estado, a mão invisível do mercado necessita apenas de seu braço forte, com a qual exercita seu legítimo uso da violência caso os refugos humanos, os fracassados sociais, os consumidores de programas sociais resolverem se rebelar contra a liberdade, do mercado evidentemente. 

Nesta “nova” (velha) seara os golpes de Estado, a desestruturação das instituições, a depreciação da política (“velha política”), o combate à corrupção que é sempre pública e jamais de interesses privados sobre o que é público, a exigência de ética na política, mas não na economia, a exigência de ajustes fiscais para acalmar o capital em detrimento das demandas sociais, a mentira sendo produzida e disseminada em escala industrial para indivíduos consumidores, tornaram-se regra. E tudo isso em nome da defesa democracia.

O que literalmente assistimos na condição de indivíduos que conduzem suas vidas sob a lógica do débito e do crédito nos últimos anos é uma vez mais a violência do ethos escravocrata de grupos da sociedade brasileira que se recusam há quinhentos anos a compartilhar uma proposta de desenvolvimento humano amparado na justiça social. Ao longo de nossa trajetória histórica todas as vezes que os brasileiros resistiram à perpetuação deste ethos escravocrata, buscando reconhecimento de direitos sociais, foram contemplados com golpes, violência, preconceitos de toda ordem, com desprezo. Entre as formas de violência recorrentes utilizadas pelas oligarquias rurais e urbanas esta a produção de salvadores da pátria, entre eles o “caçador de marajás”, o mito, o capitão e por ai poderíamos remontar histórica e temporalmente personagens desta natureza. 

Os discursos de ódio promovidos e disseminados contra os supostos “inimigos da nação”, entre eles os comunistas (sempre eles), os socialistas, os progressistas, entre outros; os acampamentos diante dos quartéis; os insanos pedidos de volta dos militares ao poder; o famigerado 8 de janeiro de 2023; a tentativa de explosão “real” – mas também ansiosamente sonhada por tantos “tios Franciscos” Brasil afora – do STF; o plano de golpe para eliminar lideranças políticas e institucionais do país são desdobramentos do recorrente e paradoxal ódio à democracia que ao longo da trajetória da colônia à República viceja entre grupos privilegiados e, que se alastra pelas diversas camadas da sociedade brasileira.  

Mas, talvez se possa considerar como novidade que se apresenta entre as últimas décadas do século XX e as primeiras décadas do século XXI mundialmente e, também no Brasil o fato de que as formas de violência contra a política (entendida aqui como comércio da palavra, arte da negociação na conformação de um espaço público e no compartilhamento do mundo) é a captura das subjetividades individuais. Ou dito de outro modo, num mundo em que o regime de acumulação de capital se apresenta flexível e extraterritorial, reduzindo o Estado a agência garantidora dos contratos de remuneração do capital (ajuste fiscal) e, ato continuo, agência de controle, vigilância e repressão de movimentos sociais que lutam pelo reconhecimento de direitos e de justiça social, os indivíduos ensimesmados encontram-se reduzidos à luta pela sobrevivência sob os imperativos do débito e do crédito. Movimento próximo foi vivenciado com a experiência nazista. Isto é: não houve também no nazismo mobilização das subjetividades? Se aceita-se isso, significa dizer de que autoritarismos, extremismos, entre outras manifestações deste gênero surgem em contextos de crises econômicas, ou em desdobramentos posteriores como foi com a crise econômica de 1930 e, mais recentemente com a crise econômica de 2008. Neste contexto, intensifica-se nos indivíduos a percepção de abandono, de precarização das condições de trabalho e de vida, a ausência de compartilhamento de um mundo comum. Sofrimento psíquico, ressentimento, ódio à política, às instituições, a movimentos sociais proliferam e se aprofundam alimentados pela máquina de produção de fake news que cotidianamente cerceia a possibilidade do diálogo político, espalha a violência discursiva, a intransigência e o dogmatismo em torno de ideias e concepções sobre os fatos comprometendo inciativas de debate consistentes em torno de um presente e um futuro comum.

Acrescentemos a este cenário a sociedade do espetáculo e o fetiche da mercadoria que se apresentam como imperativos aos indivíduos, sugerindo que é preciso “aproveitar intensamente a vida” usufruindo das benesses proporcionadas pela sociedade de plena produção e consumo. Óbvio que o estilo de vida oferecida pela sociedade do espetáculo é para poucos. Há limites econômicos, sociais, ambientais, planetários para que as massas de expropriados do mundo tenha acesso a tais promessas do “desenvolvimento” do capital. Frustração, ódio e intolerância se multiplicam na sociedade individualizada (Bauman).  Tragicamente a radicalização da violência encontra em indivíduos atomizados a disposição para oferecer espetacularmente uma solução por meio da explosão da praça pública. Paradoxalmente trata-se de martírio individual como forma de encorajamento para que outros indivíduos também assim procedam no resgate de valores, da família, da pátria, entre outras pautas de orientação moral e, sobretudo como ato fundador de sentido a um mundo desgraçadamente desprovido de sentido público, humana e socialmente compartilhado.

Este experimento de promover, de financiar formas de violência que desestruturam o tecido social, que desmobilizam conquistas sociais, que destroem pela mentira a arte da política, que sequestram a possibilidade de um mundo compartilhado é bem conhecido:  responde pelo nome “fascismo”. Manifestou-se historicamente nas primeiras décadas do século XX resultando em Estados totalitários, mas viceja nas entranhas do capital, em sua sempiterna necessidade de articular formas de acumulação, de extração, exploração e expropriação das energias vitais, sejam elas naturais ou humanas. Ao longo dos últimos séculos todas as vezes que as massas humanas de trabalhadores alcançaram junto ao Estado avanços sociais, individuais, desencadeiam-se processos de violência que agridem a política, as instituições e desarticula-se o tecido social. É a fenômenos desta ordem que se vinculam as estratégias fascistas, o que demarca sua natureza a serviço de interesses específicos, para além de sua manifestação localizada e, portanto histórica. A intensidade destas estratégias somente pode ser garantida com a constante promoção da violência.

Neste contexto, de que democracia se está falando? Talvez aquilo que chamamos de democracia tenha se apresentado majoritariamente como estratégia discursiva e de conformações de relações de poder que tornem suportável a violência inerente às sociedades espetacularizadas, as formas de subjetivação de indivíduos aptos a reproduzir este modo de vida individualizado que toma a economia como um fim em si mesmo e, de quem os imperativos devem ser obedecidos manifestando-se na condução da vida sob a lógica diuturna do débito e do crédito.

E no caso especificamente brasileiro em suas singularidades é fundamental que nos tomemos como objeto, que avancemos na compreensão de nossas fraturas e violências societárias. É preciso reconhecer a resistência histórica dos escravos, dos trabalhadores do campo e da cidade, das mulheres, dos estudantes, dos professores, dos pesquisadores, dos cidadãos inconformados com este estado de violência. Ou seja, é preciso reconhecer os mais diversos segmentos sociais que ao longo dos tempos a atualidade se posicionaram e se posicionam na urgência de afirmação de relações de poder democráticas. É fundamental nesta perspectiva continuar insistindo e exigindo que se afirmem experiências de democracia participativa que alcancem a sociedade brasileira em sua diversidade humana, cultural e política. Trata-se de apostar na democracia participativa advinda da arte da política, do diálogo, do entendimento, do compartilhamento comum do mundo.  Desconsiderar esta condição civilizatória é permitir a perpetuação da violência, dos privilégios oligárquicos representados na forma decrépita da democracia dita representativa “defendida discursivamente” e “exercitada”  pela correlação de forças políticas reacionárias majoritárias no Congresso Nacional. Para finalizar, reafirme-se que desconsiderar a urgência de afirmação de experiências democráticas diretas é manter-se expectador da insensata destruição das condições de possibilidade de compartilhamento de instituições e de uma sociedade pautada na justiça social e, por decorrência num mundo  que possa ser habitado, compartilhado entre as mais diversas formas-de-vida que nele se encontram e que lhe conferem vontade de vida, vitalidade.0

Sandro Luiz Bazzanella, Professor de Filosofia

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