De Balneário Camboriú a Biguaçu: internações à força limpam as ruas ‘à sombra dos arranha-céus’

Na manhã de 24 de janeiro, Antônio* decidiu tentar roubar uma bicicleta no estacionamento da prefeitura de Biguaçu, diante dos olhos da Guarda Municipal, taxistas e outros moradores que passavam no local. Seu objetivo era ser preso para voltar para casa, em Balneário Camboriú.

À sombra dos arranha-céus da cidade catarinense conhecida como a “Dubai brasileira”, Antônio* e outros três homens afirmam ter sido levados à força pela Guarda Municipal para internação compulsória em Biguaçu, município da Grande Florianópolis.

A reportagem “À sombra dos arranha-céus” revela denúncias de ameaça e agressão na conduta de internação involuntária de Balneário Camboriú junto ao Instituto Redenção – Ilustração: Gil Jesus da Silva

Antônio* conta que estava na esquina da casa onde mora, em Balneário Camboriú, conversando com um amigo, quando viu se aproximar uma van preta Mercedes, descaracterizada. Era perto da meia-noite de 3 para 4 de janeiro.

Três agentes da Guarda Municipal os abordaram, afirmando que os levariam para um posto de saúde e, em seguida, para o CRAS (Centro de Referência de Assistência Social) e depois seriam liberados. Naquela noite, no entanto, Antônio* não voltou para casa.

“Depois que eu saí do CRAS, que fica na rua do lado da minha casa, botaram a gente dentro do micro-ônibus. Um amigo meu perguntou para Guarda Municipal o porquê daquilo, para onde a gente estava indo e apanhou dentro do ônibus. É violência em cima de violência”, lembra.

Foi apenas na madrugada do dia 4 de janeiro de 2024, quando chegou no Instituto Redenção, na unidade de Biguaçu, que Antônio* descobriu que estava a 73km de casa.

Levado de Balneário Camboriú ao Redenção, Antônio* perambulou pelas ruas de Biguaçu até conseguir voltar para casa - Leo Munhoz/ND

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Levado de Balneário Camboriú ao Redenção, Antônio* perambulou pelas ruas de Biguaçu até conseguir voltar para casa – Leo Munhoz/ND

Antônio* tentou roubar uma bicicleta para ser preso e conseguir um telefonema para voltar para casa, em Balneário Camboriú.  - Leo Munhoz/ND

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Antônio* tentou roubar uma bicicleta para ser preso e conseguir um telefonema para voltar para casa, em Balneário Camboriú. – Leo Munhoz/ND

Internações de Balneário Camboriú fogem à lei

A internação involuntária é prevista nas leis federais 10.216 e 11.343, que atendem o direito de pessoas com transtornos mentais ou dependentes químicos. Nesse tipo de internação, conforme a constituição, o paciente não consente com a internação e uma terceira pessoa se responsabiliza e autoriza a ação.

No entanto, a legislação prevê que a internação contra a vontade da pessoa só possa ocorrer excepcionalmente, com um laudo médico individual prévio e em uma instituição hospitalar especializada no atendimento de transtornos mentais e dependência química. Santa Catarina possui cinco instituições capacitadas para esse atendimento, mas o Instituto Redenção não está entre elas.

Conforme as leis, essas pessoas só poderiam ser internadas em Caps (Centro de Atenção Psicossocial) de apenas duas modalidades; são elas: Caps III (atende pessoas em intenso sofrimento psíquico decorrente de transtornos mentais graves e persistentes) ou Caps AD III (atende dependentes químicos em sofrimento psíquico intenso e necessidades de cuidados clínicos contínuos). Comunidades terapêuticas, como o Redenção, não se encaixam nessa categoria.

Procurada, a prefeitura de Balneário Camboriú informou que possui convênio com três comunidades terapêuticas na área de inclusão social e saúde: além do Instituto Redenção, a comunidade terapêutica Luz da Vida, localizada em Camboriú, e a instituição Árvore da Vida, de Itajaí.

Acordos investigados

Conforme o portal da transparência do município, desde meados de 2018, cerca de R$ 8,2 milhões foram empenhados para essas três clínicas e R$ 5,3 milhões pagos em convênios realizados para a abordagem e tratamento de pessoas em situação de rua.

A relação entre a prefeitura de Balneário Camboriú e o Instituto Redenção — comunidade terapêutica contratada para abordagem e acolhimento e foco desta reportagem — foi alvo de ao menos três investigações e uma medida judicial em 2023.

O instituto possui quatro unidades em Santa Catarina: duas em Camboriú, uma em Itajaí e outra em Biguaçu. Desde agosto de 2020, a prefeitura de Balneário Camboriú já empenhou R$ 1.943.241,51 e pagou R$ 1.206.377,81 para a comunidade terapêutica.

No entanto, Alceu Daud de Mello, proprietário do Instituto Redenção, alega que realiza apenas internações voluntárias, ou seja, quando as pessoas encaminhadas são admitidas por livre e espontânea vontade. Além disso, afirma que não pode responder pelas ações da Guarda Municipal de Balneário Camboriú.

“O Instituto Redenção participou de um edital para receber pessoas em situação de vulnerabilidade social e é o que fazemos. Damos tratamento para a dependência química, assistência na parte psicológica, na parte social, na parte médica e tudo aquilo que está previsto em nosso Programa Terapêutico. EU NÃO SEI PORQUE É QUE VOCÊ ESTÁ INSISTINDO EM ACOLHIMENTO INVOLUNTÁRIO, VOCÊ ESTÁ FALANDO COM A INSTITUIÇÃO ERRADA”, escreveu em nota.

Antônio* denunciou ter sido levado à força pela Guarda Municipal de Balneário Camboriú até o Instituto Redenção, em Biguaçu – Foto: Leo Munhoz/ND

“A gente foi o caminho inteiro com a arma na cabeça”

Jairo* bebia uísque no estacionamento de um supermercado por volta das 21h de 3 de janeiro quando foi abordado pela van preta e pelos agentes da Guarda Municipal de Balneário Camboriú.

“Eu não sou usuário de drogas, sou alcoólatra e não incomodo ninguém, eu só estava bebendo com os outros rapazes”, disse.

Aos 47 anos, o metalúrgico conta que mora com a mãe em Barra Velha, no Norte de Santa Catarina, e estava em Balneário Camboriú para visitar o sobrinho.

“Eu disse que não era morador de rua, que eu estava na casa do meu sobrinho, mas não quiseram nem explicação, falaram ‘entra e vai embora’.

Jairo* foi para Biguaçu junto com Antônio* e com o que lembra ser mais 11 pessoas na van. Assim como o morador de Balneário Camboriú, o morador de Barra Velha não sabia para onde estava indo. Ele lembra de um homem abordado pela Guarda Municipal que apanhou durante o trajeto para o Instituto Redenção.

“Eles não me bateram, mas o rapaz que tava comigo eles bateram bastante, se a gente se mexesse eles iam atirar, a gente foi o caminho inteiro com a arma na cabeça”.

Como cães em carrocinha

A internação involuntária nos moldes de Balneário Camboriú foi proibida pela Justiça catarinense, que acusou a prefeitura de promover uma “higienização social”. Na decisão, de outubro de 2023, o desembargador Hélio do Valle Pereira comparou o tratamento do município com o dado a cachorros:

“Há menção, inclusive, de que alguns dos recolhidos são algemados, o que é repugnante. […] É dizer, até é prestada ajuda àqueles que querem, mas os que se negam são de todo modo recolhidos – não como pessoas livres, mas mais próximo do que se faz com cães, em que são colocados na carrocinha”.

Em entrevista ao Grupo ND, em 1º de fevereiro, o prefeito de Balneário Camboriú e presidente da Fecam (Federação Catarinense de Municípios) Fabrício Oliveira (PL), exaltou o projeto chamado por ele de “Clínica de Saúde”. Em sua visão, o projeto dá atendimento de saúde, psicológico e encaminha ao mercado de trabalho.

“Ele [pessoa em situação de rua] precisa da intervenção médica para que possa realmente dar mais dignidade à sua vida e é isso que nós estamos fazendo. Então está sendo exemplo, está sendo modelo, porque nós conseguimos dados e números positivos, sempre atentando bem ao respeito”, disse Oliveira.

Prefeitura alega desconhecer casos de violência

Procurada para se pronunciar a respeito das irregularidades da abordagem e da violência da Guarda Municipal, a prefeitura de Balneário Camboriú afirmou não ter conhecimento dos casos.

“A Prefeitura de Balneário Camboriú desconhece essas denúncias, cabe lembrar que a Guarda Municipal somente acompanha os profissionais de Saúde e Inclusão Social, para garantir a segurança deles”, disse trecho do posicionamento.

A respeito das práticas denunciadas por Jairo*, Antônio*, Felipe* e Eduardo*, a assessoria do município alegou que “cumpre todas as determinações tidas no processo”, com base em determinações do MPSC (Ministério Público de Santa Catarina).

“O cara tá com um fuzil e um cacete do teu lado e te manda entrar na van, você vai”

Felipe* conseguiu sair do Instituto Redenção em Biguaçu um dia depois de completar 41 anos. Ele segurava em suas mãos uma passagem para sua casa, em Balneário Piçarras, após uma semana internado. Ele conta que foi abordado pela Guarda Municipal, na mesma van preta mencionada por Antônio*, na madrugada de 18 de janeiro.

“Eu estava na praia Central, eles me pegaram e me trouxeram para cá [Biguaçu]. Vou fazer o quê? Deixar eles me baterem? O cara tá com um fuzil e um cacete do teu lado e te manda entrar na van, você vai”, lembra.

Eduardo*, de 34 anos, lembra de recusar, mais de uma vez, o convite dos agentes da Guarda Municipal e da assistência social para ser internado. Em 8 de janeiro, ele atravessava a Avenida do Estado Dalmo Vieira, paralela à orla da cidade, quando foi chamado pelos agentes, que já o conheciam, em direção à van.

Curioso, Eduardo* foi até o local e recebeu o convite para ser internado, sem detalhes de onde seria.

“Eu falei que ‘eu não quero, eu tenho família, eu tô indo para minha casa’, eu tava com a chave de casa de pescoço, disse que na segunda eu ia para uma clínica que a igreja da minha mãe arrumou, aí neguei e eles me pegaram à força. Eu uso droga e tudo, mas eu tenho casa, minha família nunca vai me deixar”, recorda.

Novos manicômios

Vinicius Lanças, doutor em sociologia política pela UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina) e porta-voz de organizações que estiveram em um ato contra a internação involuntária em Florianópolis, ocorrido em fevereiro, ressaltou a dificuldade que pessoas que são internadas involuntariamente têm para provar que não pessoas em situação de rua.

“O que a gente tem visto que aconteceu com os manicômios no século passado, até a pessoa provar, ela já está presa, dopada, provavelmente sendo de alguma forma física ou moralmente torturada. Até ela explicar, ela já está trancafiada numa clínica, porque é involuntária. Tem um ditado onde eu nasci que fala que até você provar que dobradiça não é borboleta, você já viu muita porta voando”, criticou.

Para o sociólogo, um dos principais problemas da internação compulsória validada como política pública é o risco de que abordagens abusivas tais quais as relatadas por Antônio, Jairo, Eduardo e Felipe sigam acontecendo.

“O que eu quero dizer na prática é o seguinte: se uma pessoa estiver, por exemplo, bêbada na praia e for abordada por esses agentes e ela não tiver documento, mesmo que ela seja da família mais rica, até ela explicar, ela já vai estar sob efeito de entorpecentes que os psiquiatras vão dar para ela, presa numa clínica”.

Indesejados em Balneário Camboriú aumentam população de rua em Biguaçu

Diferente de Felipe*, que conseguiu voltar para Balneário Piçarras, sua cidade de origem, após sair do Instituto Redenção, Jairo*, Antônio* e Eduardo* passaram a dormir nas ruas de Biguaçu quando deixaram a internação. Na tentativa de voltar para casa, eles pediram dinheiro, comida e ajuda para os moradores do município da Grande Florianópolis.

Os três não foram os únicos. Taxistas, comerciantes e vigilantes perceberam o aumento da população de rua no município e receberam o pedido de ajuda de muitas pessoas que contavam a mesma história: foram pegos à força por agentes da Guarda Municipal, colocados em uma van preta e internados no Instituto Redenção.

Na manhã de 24 de janeiro, após dois dias fora do instituto andando pela cidade sem documento e nem celular pedindo ajuda para voltar para Balneário Camboriú, Antônio* tentou roubar a bicicleta. Aos policiais e à reportagem, ele contou seu objetivo: ser preso para conseguir ligar para um conhecido e arranjar uma carona de volta para cidade onde mora.

Em janeiro de 2024, Antônio* denunciou ter sido levado à força pela Guarda Municipal de Balneário Camboriú, sob a justificativa de que seria levado para um posto de saúde - Leo Munhoz/ND

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Em janeiro de 2024, Antônio* denunciou ter sido levado à força pela Guarda Municipal de Balneário Camboriú, sob a justificativa de que seria levado para um posto de saúde – Leo Munhoz/ND

Para chama atenção, Antônio* tentou roubar uma bicicleta no estacionamento da prefeitura de Biguaçu - Leo Munhoz/ND

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Para chama atenção, Antônio* tentou roubar uma bicicleta no estacionamento da prefeitura de Biguaçu – Leo Munhoz/ND

Uma vez preso, Antônio* queria conseguir um telefone na delegacia para falar com a família e voltar a Balneário Camboriú - Leo Munhoz/ND

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Uma vez preso, Antônio* queria conseguir um telefone na delegacia para falar com a família e voltar a Balneário Camboriú – Leo Munhoz/ND

Ele foi até o bicicletário da Prefeitura de Biguaçu e começou a mexer em uma das bicicletas estacionadas no local. O local era estratégico. Do outro lado da rua, a menos de cinco metros de onde estava, ficavam taxistas e viaturas da Guarda Municipal, na praça Nereu Ramos, que centraliza os órgãos de justiça e segurança da cidade.

“Eu olhei uma bicicleta e fui, estourei o cadeado e fiquei parado na frente. Aí uma mulher veio, ‘a bicicleta é tua?’ Eu falei que não. Ela segurou a bicicleta, chamou os taxistas. Aí eu saí correndo um pouco, porque eu sabia que ia apanhar. Os caras me pegaram mais na frente, mas eu parei e falei, ‘me rendo, me rendo, me rendo’”, conta.

“Falam que foram trazidos de Balneário Camboriú à força e deixados aqui”

Quando foi entrevistado, em janeiro de 2024, Alexandre Ori da Silva gerenciava o restaurante Nadin, um paradouro 24h que ficava à margem da BR-101, mas que fechou em 26 de fevereiro. Ele conta que, dois dias antes da entrevista, em 22 de janeiro, uma funcionária sua viu uma van deixando pessoas na marginal, pouco à frente do restaurante. Logo, as pessoas foram pedir ajuda no estabelecimento.

“Aqui sai um, aparece outro. Sempre tem um. E agora está vindo sempre a mesma história. Falam que foram trazidos de Balneário Camboriú à força e deixados aqui.”

Procurada diversas vezes, a assessoria de imprensa da prefeitura de Biguaçu não respondeu até a publicação desta reportagem.

A volta para casa

Quando conversou com a reportagem, Jairo dormia há quatro dias nas ruas de Biguaçu e ainda tentava voltar para Barra Velha.

“Em Balneário eu não fico mais não, ô lugarzinho. Tô dormindo na rua desde domingo [em Biguaçu]. Eu só quero ir pra casa da minha mãe”.

Eduardo* e Antônio* se conheceram na clínica e se encontraram nas ruas de Biguaçu. Após Eduardo* passar 10 dias dormindo na rua, ele e Antônio* voltaram para casa com um carro de aplicativo pago por um de seus familiares.

Morador de Balneário Camboriú, Antônio* exibe machucados nas mãos e nas pernas, decorrentes das abordagens policiais sofridas. Ele se recusou a ceder às ameaças para não voltar à cidade.

“Quando eles [Guarda Municipal] deixaram a gente lá falaram para a gente não voltar, senão, ia levar uma surra. Mas se eu não voltar pra minha cidade, eu vou pra onde? Vou abandonar tudo? Não é assim que funciona”, desabafou Antônio*

Violência na abordagem social foi proibida após inquérito do MPSC

A abordagem descrita por Jairo*, Antônio*, Eduardo* e Felipe* foi proibida por uma medida judicial do TJSC em outubro de 2023. O tratamento de pessoas supostamente em situação de rua por parte da prefeitura de Balneário Camboriú é alvo de pelo menos dois inquéritos do MPSC (Ministério Público de Santa Catarina) e de um processo administrativo.

Um deles denunciou a condução forçada e armada de pessoas em situação de rua pela Guarda Municipal e chegou a suspender temporariamente o programa “Clínica Social”, nome dado para a abordagem e condução das pessoas em agosto de 2023.

Na época, a 6ª Promotoria de Justiça da Comarca de Balneário Camboriú apurou que o município realizava a condução forçada de pessoas em situação de rua para outra cidade. Além disso, no período da noite e madrugada a Guarda Municipal foi acusada de realizar a condução à força, com uso de armas e algemas, para o “acolhimento”.

Na denúncia, o Promotor de Justiça Álvaro Pereira Oliveira Melo afirmou que a conduta do município extrapolava o que prescreve a Lei e a Constituição da República, e afirmou que a abordagem armada tinha “concepção preconceituosa”, pois era voltada exclusivamente às pessoas consideradas os “indesejados sociais”.

“Os usuários são conduzidos coercitivamente permanecendo presos, durante a madrugada, sob a custódia armada de agentes públicos, na nítida tentativa de promoção de uma espécie de limpeza social”, avaliou na ocasião.

Em outubro, a liminar foi parcialmente aceita pelo TJSC (Tribunal de Justiça de Santa Catarina). No voto, o desembargador Hélio do Valle Pereira pontuou:

“Não se pode permitir a institucional estigmatização de minorias, uma criminalização da pobreza. Já não fosse suficiente todo preconceito e situação inimaginavelmente desumana aos quais estão expostos, muitos enclausurados em seus vícios, é indefensável que oficialmente se permita uma higienização social (derivação da aporofobia, que é a aversão a pobres), eclipsando-a na forma de um política pública dita humanizada, mas que na essência prioriza apenas a aparência (uma ideia de que ninguém os veja, que fiquem escondidos)”.

No final da decisão, o TJSC determinou:

  1. A proibição do uso da Guarda Municipal armada para realização de abordagens sociais às pessoas em situação de rua. A Guarda Municipal deverá se restringir apenas às atividades inerentes à segurança pública, mais especificamente no resguardo dos servidores, sem interferir no atendimento, exceto em casos de crimes em flagrante.
  2. Proibida a condução forçada de pessoas em situação de rua para o espaço denominado “Clínica Social”, bem como para qualquer outra localidade (outros municípios)
  3. Permanecer atento aos direitos fundamentais das pessoas em situação de rua, em especial à autonomia de vontade e liberdade de ir e vir

Conforme o TJSC, a prefeitura de Balneário Camboriú não recorreu da decisão que impôs as proibições.

Balneário Camboriú pode responder por cárcere privado e rapto

Passados cinco meses da decisão do TJSC e de frente com as novas acusações apontadas por esta reportagem, o promotor Daniel Paladino, da 30ª Promotoria da Capital, aponta que a conduta de Balneário Camboriú, caso as acusações de Antônio*, Jairo*, Eduardo* e Felipe* sejam confirmadas, são graves.

“Pode configurar crime de constrangimento ilegal, ameaça, rapto, cárcere privado, além de crime de lesões corporais. Em tese, quase uma dezena de crimes”, pontuou o promotor.

Investigação encontrou inconsistências em contrato milionário e chegou a suspender parceria

Em março de 2023, um termo de colaboração de 10 meses feito pela prefeitura de Balneário Camboriú indicava a intenção de pagar cerca R$ 4 milhões para o Instituto Redenção pelos serviços de abordagem social, acolhimento e ampliação e reforma da Casa de Passagem — local em Balneário Camboriú destinado ao acolhimento de pessoas em situação de rua ou vulnerabilidade.

Um processo administrativo movido dentro da prefeitura apurou inconsistências e falhas no termo de colaboração. Conforme o inquérito, a prefeitura de Balneário Camboriú não permitiu que outras instituições participassem do processo de escolha e o uso indevido da verba disponibilizada.

Em abril de 2023, a Comissão de Responsabilização do município determinou a anulação do termo de colaboração entre a prefeitura e o Instituto Redenção e a devolução do saldo remanescente pago à comunidade terapêutica.

Um mês antes, em março de 2023, outro inquérito, do MPSC, também denunciou irregularidades no termo de colaboração entre o município e a comunidade terapêutica. O processo segue aberto na Justiça catarinense.

Segundo os autos do inquérito do MPSC, cerca de R$ 170 mil foram devolvidos aos cofres públicos. O portal da transparência do município indica que R$ 613.316,71 foram pagos ao instituto no período em que o termo de colaboração valeu.

No entanto, em setembro de 2023, a prefeitura abriu um edital de credenciamento e contratou novamente o Instituto Redenção para a internação involuntária de pessoas em situação de rua. Conforme o edital, o município paga R$ 1.922,52 para cada pessoa internada contra a vontade.

Municípios de SC apelam ao legislativo para internar involuntariamente

Em Florianópolis, o prefeito Topazio Neto (PSD) sancionou no dia 4 de março a Lei que prevê a “internação humanizada” das pessoas em situação de rua. O projeto, apresentado pela própria prefeitura, foi votado e sancionado dentro de um intervalo de 40 dias.

O texto prevê que cada indivíduo abordado terá que passar por um médico, para que, atestada sua necessidade de internação, seja submetido ao prazo de 90 dias para desintoxicação. Esse período, no entanto, poderá ser suspenso a qualquer momento se for do entendimento dos familiares.

Ainda na lei sancionada na capital catarinense, há a indicação de que a internação pode ocorrer “com ou sem o consentimento da pessoa”. Em casos de internação involuntária, o Ministério Público de Santa Catarina precisa ser comunicado, bem como a Defensoria Pública, em até 72h.

O mesmo movimento foi feito por outros prefeitos de Santa Catarina. Em São José, a Câmara de Vereadores aprovou, também em 4 de março, o projeto de lei que institui o Programa de Internação Involuntária de Dependentes Químicos no município, apresentado pelo prefeito Orvino Coelho de Ávila (PSD) em 6 de fevereiro.

Em Chapecó, o prefeito João Rodrigues (PSD) defendeu o mesmo projeto, voltado para dependentes químicos. Em um vídeo divulgado nas redes sociais, ele promete, a partir de uma lei em elaboração, “remover” todos os dependentes químicos da cidade do Oeste de Santa Catarina com o apoio da Guarda Municipal.

“Fica expressamente proibido a permanência de dependentes químicos em ruas, praças e logradouros, terrenos baldios, construções ou qualquer outro espaço podendo o poder público removê-los imediatamente do local e conduzindo para outro ambiente com a Guarda Municipal, com o apoio das forças de segurança. Não ficará mais ninguém na cidade de Chapecó, se drogando em lugar nenhum”, afirmou.

Internação involuntária é medida excepcional, explica promotor

O promotor de Justiça Douglas Roberto Martins, coordenador do CSP (Centro de Apoio Operacional da Saúde Pública) do MPSC, explica em qual contexto a internação involuntária é permitida.

“Muito excepcionalmente, quando essas estratégias não tiverem dado certo e, por uma questão de necessidade de saúde daquele sujeito, para melhoria de uma condição específica dele, de uma situação de crise, de surto, a internação pode ser adotada como estratégia”, relata.

Martins elucida como o município deve recorrer quando não há instituições próprias para a internação involuntária.

“Excepcionalmente quando não tem vaga ou quando não existe CAPS III ou CAPS AD III, como é o caso de grande parte dos municípios aqui do Estado, então essa internação é feita em hospital geral em leito de saúde mental. Comunidade terapêutica não faz internação involuntária em hipótese nenhuma”, destaca.

O promotor ainda afirma que projetos de leis voltados para a internação involuntária não podem ser pensados para o bem-estar de terceiros e sim, das pessoas que serão internadas.

“Não pode ser uma política de proteção social, digamos assim, ou uma política que tenha por objetivo alcançar todo um grupo de pessoas. As internações acontecem, como eu havia dito, inseridas dentro de um projeto terapêutico individual, olhando para as necessidades daquele sujeito, para o que ele precisa para a recuperação da sua saúde”, completa.


*Embora os personagens desta série de reportagens sejam reais, os nomes citados são fictícios e resguardam as identidades das fontes

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