De canoas a carroças: como se davam as curiosas trocas comerciais na Florianópolis do século 19

Pesquisar sobre as antigas relações comerciais na Ilha de Santa Catarina é como viajar a um tempo de distâncias, silêncios e surpresas para os sentidos. A leitura da tese “Negros em Desterro – Experiências de populações de origem negra em Florianópolis, 1860/1888”, do professor Paulino de Jesus Francisco Cardoso, remete a uma época em que as trocas se davam, prioritariamente, no ambiente das comunidades isoladas da Capital. Era um mundo de pombeiros, canoeiros, empregados domésticos, quitandeiros e carroceiros que buscavam a todo custo sobreviver numa cidade de poucos recursos e com os horizontes limitados pelo mar e pelo continente quase inabitado.

Era por meio da navegação que muitos nativos venciam as distâncias e garantiam o pão de cada dia na antiga Desterro (atual Florianópolis) – Foto: DIVULGAÇÃO/ND

Em tal contexto, era por meio da navegação que muitos nativos venciam as distâncias e garantiam o pão de cada dia. Havia portos canoeiros no Rio Tavares, no Ribeirão da Ilha, na Lagoa da Conceição e em Santo Antônio de Lisboa. Os rios Tavares e Ratones eram largos e navegáveis, facilitando o acesso ao interior da Ilha para diversos tipos de embarcações. O rio Tavares, hoje um canal fétido e assoreado, tinha até 20 metros de largura e permitia a entrada até oito quilômetros foz adentro, constituindo o principal caminho entre os bairros da região e destes com a área central da cidade, ligando o sul da freguesia da Lagoa com o primeiro Mercado Público, inaugurado em 1851.

Na segunda metade do século 19, as canoas também levavam produtos agrícolas da Vargem Grande até o porto de Santo Antônio e transportavam a farinha de centenas de engenhos para a cidade, além do açúcar, do aguardente e do que saía dos curtumes e atafonas. Para onde houvesse compradores, lá iam as embarcações, a vela ou a remo.

Afora isso, existiam os roteiros “percorridos em carros-de-boi pela antiga rede de caminhos que interligavam as póvoas portuguesas na Ilha de Santa Catarina”, de acordo com Paulino Cardoso. A estradinha para o Saco dos Limões passava pelo Hospital de Caridade, seguindo pela José Mendes. Mais adiante, no Armazém Vieira, uma bifurcação levava à Costeira do Pirajubaé (pelo mangue até o porto do Rio Tavares) ou ao Pantanal (região pródiga em roças de cana e mandioca). Atrás do morro, outra bifurcação atendia aos que se dirigiam à freguesia da Santíssima Trindade ou aos vilarejos do Córrego Grande e do Itacorubi.

Na segunda metade do século 19, as canoas também levavam produtos agrícolas da Vargem Grande até o porto de Santo Antônio – Foto: DIVULGAÇÃO/ND

Em direção ao Norte da Ilha, havia quatro caminhos a partir da cidade, passando por olarias e pelas chácaras da Praia de Fora que impressionaram o viajante Auguste de Saint-Hilaire e foram a matéria-prima de muitas crônicas de Virgílio Várzea, que citava as encostas arborizadas, as frutas, os cedros e as palmeiras. Contudo, a cultura marítima criada pela necessidade de locomoção aberta fez do mar e dos pequenos rios as vias de comunicação mais importantes daquele período.

Profusão de curtumes, atafonas e engenhos de açúcar e farinha

Num tempo de estradas ruins, os atravessadores ganhavam a vida com canoas, botes e lanchas que entravam pelos cursos d’água da Ilha e dos municípios próximos para adquirir produtos que revendiam nos portos e no centro da Capital. No distante ano de 1797 havia em Santo Antônio de Lisboa 38 engenhos de açúcar, 102 engenhos de aguardente, 67 atafonas de moer trigo, 16 curtumes e 350 engenhos de farinha de mandioca. Levantamento feito mais tarde, em 1860, mostrou que a freguesia tinha 2.366 habitantes, sendo 492 cativos, 33 comerciantes, 61 pescadores registrados e 786 lavradores.

Este chegou a ser o principal porto de aguada da Ilha, onde se abasteciam os navios que demandavam em direção ao Rio da Prata, porque era protegido por várias fortalezas localizadas na baía Norte. Povoação mais antiga da Ilha, Nossa Senhora das Necessidades de Santo Antônio era, depois de Desterro, a mais importante freguesia, berço de políticos importantes e sede de atividades mercantis e da produção de farinha, arroz, milho, feijão, fava, trigo, cevada, aguardente, açúcar e melado.

Depois vinha a freguesia de Nossa Senhora da Lapa do Ribeirão, principal núcleo populacional do Sul da Ilha, onde se produziam farinha, açúcar, aguardente, frutas e hortaliças. Parte disso, graças às águas calmas da baía, vinha para a cidade em lanchões, brigues, baleeiras e canoas de velas latinas.

Já a freguesia de Nossa Senhora da Conceição da Lagoa era pródiga na produção de mandioca e farinha desde o século 18. Ali, a canoa era um bem valioso para os pequenos produtores, quase sempre à beira da miséria, e uma rede podia aglutinar até 20 pessoas, incluindo patrões, vigias, remeiros e ajudantes. Na segunda metade do século 19, 13% da população da Lagoa era formada por africanos e afrodescendentes – presença minimizada na historiografia oficial, o que denota, segundo o autor da tese, a “insignificância” da escravidão para muitos estudiosos.

Confrontos entre luso-brasileiros e afrodescendentes

No final do século 19, o mar era encarado como uma “necessária via de comércio e trabalho”, nas palavras do Paulino de Jesus Cardoso. Na vila de Ganchos (atual município de Governador Celso Ramos), as mulheres escaladeiras faziam uma espécie de semimanufatura do pescado, remetido depois para a praça do Desterro. Era um tempo em que se vendiam peixes de porta em porta e em que a tainha, quando pescada em grande quantidade, ia de carro-de-boi até os postos do interior da Ilha, onde era comprada pelos atravessadores.

De perfil preponderantemente agrícola, as freguesias da Ilha estavam bem articuladas ao mercado de abastecimento interno – Foto: DIVULGAÇÃO/ND

De perfil preponderantemente agrícola, as freguesias da Ilha estavam bem articuladas ao mercado de abastecimento interno, graças às conexões por rios, lagoas e pelo mar, comerciando entre si e com o porto do Desterro. O fato de haver centenas de engenhos de farinha de mandioca permitia a exportação do produto para Montevidéu, Recife e, especialmente, para o Rio de Janeiro, além de localidades do litoral catarinense.

Naquela altura, o primeiro Mercado Público, instalado em frente à atual praça Fernando Machado, era o ponto de convergência de múltiplos personagens e também de confrontos entre luso-brasileiros (inquilinos das casinhas) e demais autoridades municipais com os africanos e afrodescendentes. “O próprio mercado fora construído em oposição ao controle da distribuição de gêneros pelos quitandeiros da praia”, afirma o pesquisador Paulino.

Eram comuns as fricções naquele ambiente, inclusive entre lusos pobres, que buscavam seu espaço de sobrevivência e viam nos africanos – fossem cativos, livres ou libertos – um empecilho para o seu trabalho. Num tempo em que a maioria da escravidão era doméstica, havia negros de mais iniciativa e ousadia que, além da alforria, almejavam conquistar espaço na vida social e no comércio da Ilha.

Nesse intento, eles esbarravam em restrições de toda ordem. Um ofício enviado ao fiscal da praça do Mercado pelo médico e escritor Duarte Paranhos Schutel, presidente da Câmara  Municipal, mostra qual era o comportamento da autoridade constituída em relação aos negros: “A fim de manter-se ordem e a decência que devem existir na Praça do Mercado”, o edil ordenou-lhe que não consentisse no estabelecimento “(…) nem pretos e outros quaisquer indivíduos que não sejão os locatários das casinhas de quitanda e nem a entrada, senão momentânea de uma alemã que se acha affectada de moléstia contagiosa (…)”. Ignorava ele que nas sociedades africanas os mercados sempre foram espaços de sociabilidade, e que a vida na rua era mais importante que a habitação individual.

Cheiro de alcatrão, quitutes e tabernas

Em 1870, a baía Sul era delineada pela praia do Menino Deus (ainda não aterrada), o quartel do Campo do Manejo (onde está hoje o Instituto Estadual de Educação), o forte de Santa Bárbara (depois sede da Capitania dos Portos), a Igreja Matriz, o palácio do governo, o Mercado do Peixe e o trapiche municipal. Pela ponte do Vinagre, sobre o rio da Bulha (hoje canal da avenida Hercílio Luz), chegava-se à Tronqueira, bairro popular que abrigava muitos curtumes e onde moravam lavadeiras, oleiros, soldados e marinheiros. Como tal, era um lugar mal visto pela elite, associado à falta de higiene e ao mau cheiro das tabernas.

A partir do primeiro Mercado, nos arredores da praça central surgiram trapiches, estaleiros, armazéns, casas de negócios, hotéis e padarias. Nos bairros da Figueira e do Rita Maria entrecruzavam-se soldados, marinheiros, estivadores, criados, calafetes, carpinteiros e “vadios de todas as ordens” que, segundo o escritor Virgílio Várzea, adoravam aquele local à beira-mar, que cheirava a alcatrão.

O novo Mercado Público, inaugurado em 1899, mudou bastante a configuração do Centro. Ainda assim, não saíram de cena as mulheres negras que eram excelentes quitandeiras e quituteiras. Nas palavras do historiador Oswaldo Rodrigues Cabral, essas senhoras adoçaram as manhãs de domingo até o início do século 20.

 

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