Opinião | Trabalho de pretas e pretos

“Imigrantes estão roubando o trabalho dos pretos”. Foi assim, como um showman do absurdo, que Donald Trump despejou o que há de mais retrógrado, durante uma entrevista para a Associação Nacional de Jornalistas Negros (NABJ), em Chicago. Não é à toa que Simone Biles, a maior ginasta de todos os tempos, ironizou, com a elegância de uma campeã olímpica: “Eu amo meu trabalho de negra”.

No Brasil, em lugares como Santa Catarina, em Blumenau, muitos compartilham, ainda que de forma velada, o mesmo pensamento que Trump, o homem laranja, expôs abertamente. Ao longo da história, no mundo inteiro, acontece que nunca foi preciso ser imigrante para que o trabalho de pretas e pretos seja constantemente usurpado, invisibilizado ou relegado a segundo plano. Como respondeu Biles, outras mulheres e homens pretos também amam, resistem, lutam e vencem – no tatame, na areia, nos tablados, e na vida.

As Olimpíadas trouxeram um frescor de esperança. Paris 2024, por diversos motivos, reforçou a importância da representatividade. O ouro brasileiro foi conquistado pela força, técnica e garra de mulheres pretas.  Elas estavam por inteiras na arena para escrever uma nova história. Beatriz Souza no judô, Rebeca Andrade na ginástica artística, e a dupla Ana Patrícia e Duda no vôlei de praia, cada uma delas, em sua modalidade, provou que quando uma preta tem a oportunidade de competir em igualdade, ela não apenas participa; ela vence.

Um ouro que não se limita ao pódio, mas que reluz na luta diária por representar uma massa imensa de pessoas esquecidas, de histórias apagadas. Enquanto essas atletas brilham nos holofotes internacionais, em muitos cantos do Brasil, pretos e pretas ainda enfrentam barreiras que se erguem como muros de contenção, impedindo que seu talento, sua força e sua voz ecoem. Em Blumenau, por exemplo, cidade que registra o maior número de células nazistas no Brasil, os obstáculos são históricos e culturais.

Mesmo sendo um dos primeiros administradores da cidade, Thomé Braga, um negro baiano, é quase uma figura apagada na memória coletiva. E basta uma eleição nacional chegar para episódios de xenofobia e racismo pintarem as redes sociais.

Também é praticamente impossível encontrar outros nomes pretos na narrativa oficial local. Em toda a sua longa história, apenas um homem negro conquistou uma cadeira na Câmara de Vereadores, diretamente, e isso há quase 70 anos. Mais emblemático ainda é que nunca, nestes anos todos, uma pessoa preta teve a chance dos partidos políticos de candidatar-se aos cargos de prefeito ou vice-prefeito. Parece que o “trabalho de (ser) preto” em Blumenau é, de fato, manter-se à margem, excluído do centro das decisões e da representação. Uma minoria invisível, cerca de 20% da população, tratados quase como se fossemos uma estatística inconveniente.

Essas medalhas olímpicas, conquistadas por mulheres pretas, são mais que vitórias pessoais das atletas. Reitero: não se trata apenas de medalhas, mas do que elas representam. O valor e o peso são os símbolos de resistência em um país onde, apesar de ser maioria, pretos e pretas continuam (re)tratados como minoria em termos de direitos, oportunidades e reconhecimento; São a prova viva de que, quando uma pessoa preta é valorizada e recebe a chance de ocupar espaços antes reservados aos brancos, o resultado é ouro. Elas trazem à tona a urgência de discutir políticas de inclusão e reparação, como as cotas raciais, que têm sido fundamentais para que muitos possam sonhar além das amarras sociais.

Enquanto no esporte elas conquistam o pódio, na vida real, pretos e pardos continuam a enfrentar desafios titânicos. No Brasil, representamos dois terços da população desocupada. Quando empregados recebemos salários 45% mais baixos do que brancos com a mesma formação, e somos 75,5% das vítimas de homicídios.

Em Santa Catarina, onde apenas 3% dos municípios possuem políticas públicas voltadas para a população preta, a luta é ainda mais árdua. Em 2023, a Assembleia Legislativa vetou a tramitação de um projeto de lei que previa cotas para que pessoas pretas ocupassem cargos no serviço público, uma demonstração clara de que a exclusão ainda é um projeto político ativo.

As políticas de cotas raciais têm sido um exemplo tímido, porém significativo, de reparação em um país machucado por uma formação escravagista. Um gesto pequeno que busca ajudar a vencer uma barreira enorme que separa, pela cor da pele, aqueles que podem sonhar e aqueles que são condenados a uma realidade imposta pela sorte do nascimento. Uma ferramenta que tem o poder de transformar vidas, de romper com o ciclo de exclusão que, por séculos, aprisionou a população preta em um destino de uso, pobreza e marginalização.

Os jogos Olímpicos sempre ensinam muito sobre nós todos, os humanos. E Paris deixou esta lição: o poder do “trabalho de pretas e pretos”. Diferente do que Trump e os seus acreditam, o “trabalho de preto” não é menos digno, menos valioso ou menos brilhante. Este lavoro vai além do suor e da labuta diária, no esporte ou fora dele… segue como uma maratona, uma corrida de obstáculos onde a linha de chegada parece distante. A batalha é para mostrar ao país que, quando desperta para o potencial de sua população preta, só tem a ganhar. E eu? Bem, eu amo meu trabalho de preto.

Tarciso Souza, jornalista e empresário

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