‘Um darwinista de primeira ordem’: livro conta as pegadas do grande naturalista Fritz Müller

O tema merece, mas o geógrafo e historiador Marcelo Vieira Nascimento fez mais do que ele mesmo imaginava e entregou ao público e à comunidade científica, em março, uma portentosa obra de 1.378 páginas sobre o naturalista, botânico e professor Johann Friedrich Theodor Müller, mais conhecido como Fritz Müller, colaborador de primeira linha de Charles Darwin que fez pesquisas em Santa Catarina e deu aulas na cidade do Desterro, antigo nome de Florianópolis, em meados do século 19.

Livro de Marcelo Nascimento conta a obra do grande naturalista Fritz Müller – Foto: Leo Munhoz/ND

O livro “Fritz Müller Desterro – Um Ser Humano e sua Ciência” acompanha a viagem de um homem obstinado pelo mundo de organismos que as pessoas comuns costumam pisar ou ignorar, por desconhecer sua natureza e importância. De folhas e ramagens a pequenos mexilhões, passando por flores e frutos que são pródigos no Vale do Itajaí, por exemplo, além de seres que se multiplicam nas praias e mangues do litoral, o legado do alemão que viveu a maior parte da vida em território catarinense é esmiuçado e passado a limpo, com ampla documentação.

Importa dizer que Fritz Müller (1822-1897) foi um cientista que afrontou normas e tradições de sua terra natal e que em Blumenau, onde se fixou após deixar a Europa, também viveu à margem do que a sociedade esperava de um homem culto. Era visto como um colono – o que de fato era – arredio e estranho, que no entanto, com a proteção do colonizador Hermann Blumenau, conseguiu conciliar trabalhos formais como a exploração do universo do Vale, com sua flora e fauna rica e multifacetada.

Na Ilha de Santa Catarina, foi professor do Liceu Provincial e enfrentou a incompreensão de colegas e de superiores que não admitiam seu ateísmo e apego extremo à ciência. No entanto, foi ele quem passou para a história, convalidando, com suas pesquisas, relatórios, cartas, litografias e amostras coletadas, as ideias revolucionárias de Darwin, o criador da Teoria da Evolução. O livro “Für Darwin” (traduzido como “Fatos e Argumentos a Favor de Darwin”), de 1864, corrobora a teoria do naturalista e biólogo britânico que mudou a forma como o homem moderno vê a si próprio.

Em três tomos, a obra de Marcelo Nascimento traz informações nunca antes publicadas, correspondências inéditas, centenas de ilustrações de plantas e animais e um vasto número de relatórios em formato de cartas que chegaram às sociedades científicas europeias de um século e meio atrás. São reproduzidos 618 desenhos, fotos e cartões-postais, além de 95 tabelas e 16 mapas. O trabalho conta ainda com ilustrações de naturalistas e imagens de espécies animais (zoologia) feitas por Fritz Müller e depositadas em museus da Alemanha.

Ilustrações científicas de Fritz Müller – Foto: Reprodução/ND

Do paraíso tropical para os salões europeus

Para reunir o maior volume possível de material e agregar mais informações ao conteúdo, Marcelo Vieira Nascimento percorreu boa parte das trilhas que Fritz Müller palmilhou no Estado e passou mais de um mês na Alemanha, país que guarda com esmero o que o cientista enviou enquanto pesquisava em solo brasileiro. Lá, visitou museus, bibliotecas, universidades e as cidades da Turíngia onde Müller passou a infância e a adolescência. “Vi o cuidado com a conservação de acervos, papéis e documentos, incluindo o diploma original dele na Universidade de Berlim”, conta o autor.

Apesar do hiato temporal e das dificuldades com o idioma alemão, Nascimento diz que foi muito bem recebido, a ponto de ter sido autorizado a entrar na igrejinha onde Fritz Müller batizou a primeira filha, que conserva esse registro e também a página onde está oficializado seu casamento. Na vila de Windischholzhausen, onde nasceu o naturalista, vivem hoje cerca de 1.200 pessoas.

Na segunda metade do século 19, a Alemanha mostrou-se mais receptiva que a Inglaterra à teoria evolucionista de Charles Darwin, publicada em 1859. Grupos de cientistas germânicos se reuniam com frequência e se deleitavam com as notícias que Fritz Müller enviava – ele que vivia num paraíso tropical, com características bem diferentes, em termos de diversidade, do norte da Europa.

“Hermann Müller, irmão de Fritz, foi um darwinista de primeira ordem, e era quem recebia o que vinha do Brasil”, informa Marcelo Nascimento. “Uma das vantagens é que aqui havia uma vegetação e uma fauna que a Europa não possuía. Muitos cientistas de lá se valiam de observações de colegas que viajavam pelo mundo. Assim, mesmo longe de tudo, Fritz Müller foi o maior naturalista de campo do século 19”.

Fritz Müller: um cientista que queria desvendar o mundo

Fritz Müller era descendente de pastores protestantes, por parte de pai, e de cientistas e professores universitários, pela linha materna. Em 1841, aos 19 anos, saiu da cidade de Erfurt, onde a família residia, e foi estudar em Berlim, onde em 1844 recebeu os títulos de mestre em artes liberais e doutor em filosofia. Para realizar o sonho de conhecer e pesquisar as florestas tropicais e os mares do novo mundo, precisava do título de medicina – a única chance de embarcar num navio, na época.

Como não quis pronunciar a palavra Deus, então obrigatória no juramento de colação de grau na universidade Greifswald, ficou sem o diploma. Viajou pela Alemanha, conheceu e se casou com Karoline Töllner, e dessa união nasceram suas duas primeiras filhas. Em maio de 1852, embarcou com a família e com o irmão August, no porto de Hamburgo, com outros imigrantes, chegando a São Francisco do Sul um mês depois.

O passo seguinte foi se instalar na Colônia Dr. Blumenau, ainda incipiente, e ali o grupo ficou provisoriamente alojado na casa do pioneiro colonizador da região. Os dois irmãos adquiriram uma área de terra cada um junto ao ribeirão Garcia, construíram uma casa e começaram a plantar. Ao mesmo tempo, Fritz Müller conheceu as primeiras orquídeas e bromélias e teve contato com insetos e animais que nunca tinha visto, além de índios kaingang e xokleng.

Moluscos na praia, plantas no Vale

A vinda do naturalista para o Desterro foi em 1853, quando um surto de febre amarela vitimou vários professores secundários e o presidente da província de Santa Catarina, João José Coutinho, obteve a indicação de Hermann Blumenau para contratar Fritz Müller para o colégio público e laico que decidiu criar na cidade. Para dar aulas de matemática e história natural, o cientista se naturalizou brasileiro em novembro de 1856.

Morando fora da área central, na Praia de Fora (atual avenida Beira-Mar Norte), ele aproveitou para realizar as pesquisas com camarões, crustáceos e outros animais marinhos que enriqueceram seus conhecimentos sobre zoologia e ajudaram a confirmar a teoria evolucionista de Charles Darwin.

Em 1867, sem condições de seguir no magistério por causa de perseguições de líderes religiosos e políticos locais, voltou a Blumenau, onde adquiriu uma área de terra (atual sede do Museu Fritz Müller), cultivou hortifrutigranjeiros e explorou a flora da região, fazendo descobertas que também encaminhou à Europa e que fazem parte de acervos importantes no Velho Continente. Como era funcionário público com estabilidade funcional, passou a atuar como pesquisador a serviço da província, dando continuidade à produção de artigos científicos que iniciara na cidade do Desterro.

O reconhecimento na passarela do samba

Antes de morrer, em maio de 1897, Fritz Müller publicou “Für Darwin” e manteve com o criador da Teoria da Evolução uma relação de correspondências que durou 17 anos. Ele havia sido nomeado, em 1874, naturalista do Museu Nacional do Rio de Janeiro, para onde também remeteu material de botânica e zoologia coletado em Santa Catarina. Ao longo de sua trajetória, escreveu 269 artigos, publicados em periódicos e revistas científicas do Brasil, Inglaterra e Alemanha.

Se enfrentou a incompreensão de muitos catarinenses na segunda metade do século 19, não é suficientemente generosa a atenção que o Estado dedica hoje ao grande naturalista. Blumenau tem um museu com seu nome, mas em Florianópolis ele é lembrado apenas por batizar uma rua no Continente e um prédio de apartamentos. Muita coisa que está no livro de Marcelo Vieira Nascimento continuava, até pouco tempo atrás, anônima nos acervos do Arquivo Público do Estado, do Arquivo Histórico de Florianópolis e do Centro de Memória da Assembleia Legislativa.

Com “Fritz Müller Desterro – Um Ser Humano e sua Ciência”, Nascimento atinge o objetivo de “mostrar como um teuto-brasileiro apresentou ao mundo espécies de plantas e animais que a ciência não conhecia, porque só existiam aqui”. Agora, o livro será lançado em Videira (20 de abril), Timbó (29 de abril) e Blumenau (5 de maio).

A obra também foi selecionada para o prêmio Jabuti Acadêmico em três categorias, e ajudará a escola de samba Consulado, de Florianópolis, a fazer seu enredo para o Carnaval de 2025, que terá como tema a vida e o legado de Fritz Müller.

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